Liliane Braga: Brasil-Cuba-Canadá: construindo comunidades aqui e acolá

Agosto de 2004. Um projeto de intercâmbio entre rappers brasileiros e cubanos escrito por mim e pela minha parceira Cris Moscou levou uma “delegação” brasileira a Cuba para a 10ª edição do Festival Havana Hip Hop, que não aconteceu – a quem leu o texto

Brasil-Cuba-Canadá: construindo comunidades aqui e acolá, ici et là-bas, here and there, acá y allá…


 


Freestyles, rodas de break, troca e vendas de demos e conversas “multi-língues” jogadas fora nos momentos de espera pelas atividades oficiais agendadas-e-não-realizadas propiciaram trocas de várias ordens entre estrangeiros(as) e cubanos(as). Nesse meio, um grupo multi-cultural, com integrantes de várias “cores” e fenótipos, me chamou a atenção.


 



 Julho de 2006. Chego a Havana para os dois últimos dias da 2ª edição do Simpósio de Hip Hop cubano, realizado pelo casal de raperos Magia e Alexei (El Tipo Este) e pelo coletivo La Fabri_K, do qual fazem parte (depois do furacão, a Associação Hermanos Saíz, braço cultural do governo cubano, abriu espaço para que raperos(as) associados(as) à Agência Cubana de Rap pudessem organizar seu próprio evento). Um “tipo” me aborda falando espanhol, querendo saber se eu havia estado em Havana em 2004, se eu era brasileira e pergunta se conheço o Gaspar, do Z´África Brasil. Depois da resposta positiva a todas as suas perguntas, fico sabendo que ele integra o tal grupo multi-cultural. Falamos da possibilidade da realização de atividades com o grupo dele no Brasil e trocamos contatos. Dia seguinte. Do quiosque em que comprava um refrigerante, a poucos metros do local do simpósio, reconheço dois rapazes que haviam se apresentado na noite anterior, rapeando em inglês. Vou falar com eles. Combinamos para que me dêem suas demos quando nos encontrarmos no evento, dali a algumas horas. Com as demos nas mãos, trocamos e-mails.


 



Novembro de 2007. Lou Piensa e Ian Kamau vêm a São Paulo. Lou Piensa: o tal “tipo” do “tal grupo” multi-cultural. Ian Kamau: rapaz de língua inglesa que, acompanhado do rapper Equinox, havia sido abordado por mim no meu pós-refrigerante na caliente e calorosa Havana.


 



Ian Kamau (www.myspace.com/iankamau) é poeta. E também MC. Do que apreendi de uma fala de Oswaldo de Camargo, o jornalista-poeta-escritor autor de “O Negro Escrito”, um dos fundadores do Quilombhoje, MCs seriam poetas que trabalham sob a lógica de uma base musical, enquanto que no trabalho de poetas “tradicionais”, os próprios versos do poema concentrariam o seu ritmo. Ian Kamau, além de poeta e MC, faz música. “Kamau Music” é o que se lê nos CDs que andou distribuindo em São Paulo na sua passagem por aqui.


 



Lou Piensa é MC e produtor musical. Seus bits estão presentes nas músicas do grupo Nomadic Massive (“Massa nômade”), do qual faz parte ao lado de outros 11 integrantes, entre homens e mulheres imigrantes ou filhos de imigrantes de diferentes partes do mundo, de 20 a 34 anos. “Nomad´s land” é o nome do primeiro CD do grupo (www.myspace.com/nomadicmassive), cujos integrantes vivem em Montréal, Quebec. Ian Kamau Prieto-McTair é de Toronto, mas seus pais são de Trinidad. Roger McTair e Claire Prieto imigraram da ilha caribenha para a América do Norte na década de 70, onde se tornaram os primeiros cineastas negros do país. Canadá “francês ” versus Canadá “inglês”: Lou está do lado “francês”, enquanto Kamau vive no Canadá “inglês”. Ambos com 29 anos de idade, vivendo em cidades com muitas diferenças culturais provenientes de colonizações distintas e rivais e dos diferentes fluxos e tratamentos concedidos a imigrantes em cada uma delas.


 



Pude acompanhá-los na maior parte de suas andanças por São Paulo e também em uma rápida ida ao Rio de Janeiro, onde assistiram à premiação do Hutúz no Canecão e se encontraram com conterrâneos, integrantes do grupo The Rawluck, que se apresentariam na noite seguinte no Circo Voador.


 



Era a primeira vez de LouP por aqui. Diferente de Kamau, que havia estado no Brasil em agosto com a Schools Without Borders (Escolas Sem Fronteiras), uma das organizações em que atua e que realiza um trabalho com jovens educadores(as) de periferias – ou subúrbios – no Rio de Janeiro. Na ocasião, ele esteve em São Paulo e conheceu pessoalmente o seu “xará”, o Kamau da zona norte, MC do grupo Simples.



LouP e Kamau estiveram no I Encontro Paulista de Hip Hop (Memorial da América Latina); na Cidade Tiradentes – onde visitaram as posses Aliança Negra e Força Ativa convidados pelo rapper Panikinho, que havia conhecido Kamau no Quênia, durante o Fórum Social Mundial de janeiro deste ano; e no Sarau do Binho (Campo Limpo), a convite do Gaspar do Z´África Brasil. Lou teve ainda a oportunidade de conhecer a festa realizada pelo DJ KL Jay em São Paulo às 5ªs feiras, o Sintonia, além de ser recebido por Nino Brown na Casa de Hip Hop de Diadema depois de tê-lo conhecido no debate com Fred Hampton Jr. (POCC) e Mano Brown na ONG Ação Educativa no dia 19/11. Nascido na França, filho de pai francês e mãe inglesa, Lou chegou a viver na África e no Caribe. Na América do Sul, o único lugar que conhecia era a Bolívia. Para além da sua experiência de viajante, está a sua vivência em um lugar em que, numa mesma conversa, são usadas frases em francês, inglês e, às vezes, espanhol. O número de línguas num mesmo diálogo chega a aumentar quando os interlocutores são filhos de imigrantes de países de outras línguas. No seu grupo, há uma cantora argelina e um MC iraquiano, ambos mulçumanos desde o nascimento.


 


Isso quer dizer que além das línguas dos países de origem, falam árabe. Perguntas a respeito das questões sociais, educacionais e, principalmente, raciais do nosso país eram frequentemente disparadas por Lou – que havia lido em seu “guia de viagens” que a população negra do Brasil representava apenas 8% do número total de habitantes do país. O número, no entanto, foi rapidamente questionado pelo que os olhos dele viram pelas ruas de Rio e São Paulo.


 



Com LouP e Ian Kamau foram feitas trocas de informações riquíssimas que, infelizmente, não cabem nesse texto. De um encontro ocasionado em Cuba em meio a um furacão – Oiá na terra de Oxum… – a um projeto em que essas trocas possam ser ampliadas e realizadas com mais pessoas… Esse é o nosso atual intuito agora. A proposta é que o grupo Nomadic Massive e o poeta, MC e músico Kamau (e, quem sabe, o Obsesión, formado por Magia, Alexei e Isnay – www.myspace.com/obsesioncuba) possam vir ao Brasil em 2008 para apresentarem o seu trabalho musical, mas também para concretizarem essa troca de experiências com o povo daqui. Daqui até lá, o Hip-Hop à Lápis voltará a informar a quantas anda esse projeto, que já conta com parceiros como a produtora Elemental, do Z´África Brasil (o grupo integrava o projeto de intercâmbio com Cuba em 2004, mas não chegou a embarcar para a ilha); o site Bocada Forte; o Instituto Paulista de Juventude; a Zulu Nation Brasil e os organizadores do evento Master Crews. É o hip-hop construindo comunidades onde quer que nos encontremos…]


 


I Encontro de Pesquisadores de Hip-Hop Discute Relação Entre Universidade, Pesquisadores(as) e Hip-Hoppers



Nos dias 3 e 4/12 aconteceu no campus da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em Araraquara (SP), o I Encontro de Pesquisadores de Hip-Hop, com o tema “Sonhos, conflitos e realizações – qual a contribuição da universidade para esse debate?”. Organizado por estudantes negros(as) de graduação que integram o Nupe (Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão), o evento contou com a presença de pesquisadores e pesquisadoras de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Carlos (SP) e Paraná, entre outros lugares, além de representantes do movimento Hip-Hop de Araraquara, Sorocaba, Franca e Marília, tanto nos debates quanto em intervenções artísticas. A expectativa, a partir do encontro, é que a produção de conhecimento de todos os lados – universidade, sociedade, periferias – possa estar cada vez mais em diálogo. A produção de conhecimento científico perde muito sem o protagonismo de hip-hoppers criticando a produção acadêmica e eles(as) mesmo(as) revolucionando essa produção com a sua presença dentro das universidade.


 


No encontro, teve início uma discussão sobre a relação entre pesquisadores(as) e integrantes do movimento hip-hop, que têm seus conhecimentos explorados pelos que estão em busca de títulos de graduação ou pós-graduação, na maior parte das vezes sem oferecer uma contra-partida equivalente a quem possibilita a realização de suas pesquisas. A proposta é aumentar o debate em torno desse e outros assuntos no próximo encontro – possivelmente, a ser realizado na cidade de São Paulo.


 


Liliane Pereira Braga é jornalista, autora da pesquisa “De Oyó-Ilé a ‘Ilé-Yo’: Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente” e do curta-metragem “Zona Caliente – Santiago de Cuba Hip Hop”, exibido no Hutúz 2007. Tem textos publicados na revista Raça, nos jornais Brasil de Fato e Estação Hip-Hop e no site da Revista Raiz. bragaliliane@hotmail.com

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