“Los Silencios”: A hora dos destituídos

Nesta mescla de ficção e memória, cineasta brasileira Beatriz Seigner reconstrói a dor e a esperança das vítimas do conflito colombiano

Ao tratar das cicatrizes interiores dos deserdados colombianos, causadas pelos conflitos armados entre as forças populares e o Exército colombiano, este “Los Silencios” reflete sobre a perda e a reparação. Seu tema central são as consequências para as vítimas cujas feridas não cicatrizaram.

Não à toa a cineasta brasileira Beatriz Seigner mescla o mergulho no inconsciente ao realismo mágico. A mãe Amparo (Marleyda Soto) convive com o filho adolescente Fabio (Adolfo Sanvinvino), o companheiro Adão (Henrique Diaz) e a filha já moça Nuria (Maria Paula Tabares Peña) como se nenhum conflito os tivessem atingido.

Na primeira parte da narrativa, Seigner não estabelece qualquer dicotomia entre a realidade e a ficção. O espectador se vê diante de uma família pobre a viver num barraco de madeira no alagado. Amparo se mostra ativa a orientar Fabio e sair à procura de trabalho. Adão surge a intervalos numa relação carinhosa com ela. Chega inclusive a lhe acariciar a face, diante de Nuria e Fabio, fato normal em qualquer família. Seigner, diretora e roteirista, não usa flashes-backs para diferenciar o real e o imaginário. O que daria pistas para o espectador entender o que se passa.

Em toda narrativa perpassa a sensação de perda, de algo ainda não resolvido. Amparo não interage com Adão ou Nuria em várias sequências. Eles parecem estar em diferentes universos. Salvo quando ela insiste com Fabio para ir à escola e se alimentar direito. Às vezes o próprio Adão interage com os filhos. Seigner joga com esta dicotomia para o espectador centrar-se no distanciamento entre os personagens, sem atentar para o seu significado. Principalmente em relação a Nuria, que poucas vezes se locomove pelo único cômodo do barracão quase sem divisórias.

Confronto armado forçou Amparo a morar no alagado

Este é o fio condutor desta complexa história que aos poucos é configurada. A começar pela sequência da conversa de Amparo com o advogado que trata de seu processo contra o Governo. Ela não está no alagado por ser vítima da desigualdade social, mas por questões políticas. Como milhões de famílias desabrigadas, ela foi forçada a mudar pelo ataque desfechado pelas Forças Armadas e os paramilitares colombianos, dentre eles latifundiários, contra as Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e seus aliados. Em jogo estava a luta pela república popular.

Segundo relatório da organização Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos), publicado em 02/08/2018, 7.700.000 milhões de colombianos foram desalojados de suas terras e cidades de 1958 a 2016. Seigner não cita estes dados, pois não se trata de documentário, mas encena suas consequências. Amparo e seus vizinhos vivem na chamada Ilha da Fantasia sem infraestrutura urbana. Nem assim estão livres da cobiça dos predadores imobiliários e empreendedores do turismo. Na emblemática sequência da assembleia de seus moradores, o líder comunitário comunica-lhes a ameaça fantasiada de bom negócio.

O resultado, mesclado à desconfiança, foi de que seriam desalojados. Muitos ficaram indignados, diante do que o Presidente, como o líder é chamado, alertou-os para os perigos de continuarem em meio aos conflitos entre os guerreiros, o Exército e os paramilitares. ”Somos nós (os pobres) as maiores vítimas, não os ricos” (Citação não literal). De fato trabalhadores rurais, urbanos e sitiantes foram os mais atingidos pelas forças em confronto. Segundo relatório do Centro Nacional Colombiano de Memória Histórica de 1958 a 2018 foram registrados 260 mil mortos,

Os pobres são os mais prejudicados

Com estes fios narrativos, Seigner amplia a visão do espectador sobre os infortúnios dos desalojados pelos conflitos armados na Colômbia antes do acordo de paz selado em 27/06/2017. O líder das Farc, Rodrigo Londono (Timonchenko, 22/01/1959) e o então presidente da Colômbia (2010/2018), Juan Manuel Santos (10/08/1951), encerraram um capítulo do conflito bélico. Este, porém, não foi extensivo a outras organizações de esquerda, que continuam a lutar por uma república popular/socialista.

Contudo, dada a amplitude do tema, centrado na epopeia de Amparo, Seigner estrutura a subtrama na qual garota Nuria desenvolve sua luta em prol dos executados. Une-se à jovem amiga, numa espécie de aliança entre os não identificados. Em belas sequências rio acima, a diretora/roteirista funde o mergulho interior da mãe ao realismo mágico da filha. Predomina a atmosfera das azuladas águas do rio e a atmosfera matizada pelos tons multicolores criados pela diretora de fotografia Sofia Aggioni. É também o instante em que Nuria interage com os que, como ela, deixaram o limbo.

O realismo mágico tão em voga nos nas décadas de 70 e 80 na literatura sul-americana é revigorado desta vez pelo cinema. Não só de forma imagética, como de mergulho interior para dar sentido à dualidade estruturada por Seigner. Amparo, em sua ânsia de reviver seus instantes familiares termina por ser dominada pela perda. Assim, convive com Adão e Nuria em projeções do subconsciente. Por seu lado, a jovem sente-se bem por ser liberada das luzes e poder trançar pelo universo das sombras.

Seigner não dá pistas aos espectadores

Os espectadores podem tentar decifrar o porquê de Adão e Nuria escaparem ao realismo. Entendido aqui como a interação de Amparo com o companheiro e a filha. Eles estão no mesmo ambiente, mas se mantêm alheios a ação a se desenrolar à sua frente. Seigner, porém, não lhes dá pista alguma. E desta forma evita desvendar desde o início a não inteiração entre dois personagens importantes para expor a dualidade ditada pelo realismo mágico. No entanto a perda e a memória não são vistas como o passado pois se tornaram fatos em ocorrência, Amparo não se libera delas, mais por ter-se entregue às lembranças de dois entes queridos.

Com sequências ágeis e curtas e por saber onde posicionar seus atores e sua câmera, Seigner consegue manter absoluto controle da cena. Como nas sequências em que Amparo se deixa acariciar ou discute com Adão. Nuria se mantém inerte e Fabio permanece à distância. E no desfecho quando ela é, enfim, liberada não reage como se estivesse indo reencontrar a mãe e o irmão. O sentido destas construções é exigir do espectador tanto perspicácia, quanto não se ater ao “real a se desenrolar na tela”. Os dois universos se completam: o de Amparo como projeção da mente; o de Nuria é o temor de permanecer no limbo dos vivos.

O importante é que as sub-tramas e a narrativa deste “Los Silêncios” são ditadas pelo rigor do olhar de Seigner. E isto o transforma numa construção feminina do cinema centrado na realidade e na fantasia a um só tempo. Suas menções ao conflito bélico entre as forças antagônicas na Colômbia são indiretas. Ela se interessa mais pelos dilemas humanos. No caso a mulher a oscilar entre o passado e o aflitivo presente. Cabe a Amparo sustentar o filho e, ao mesmo tempo, pressionar o Governo a lhe restituir a memória do passado para que o presente não seja tão aflitivo.

A perda de Amparo deve ser reparada

Este anseio é encaminhado como forma de reparação pelos danos causados à sua família. Não pode o Estado burguês negligenciar o que escapa ao seu controle e destroçar a vida dos que acabam se insurgindo contra sua decadência. São os que não detêm os meios de produção, mas os operam que não se vergam aos desmandos da classe no poder. Daí a força a emergir de Amparo ao ter de sustentar o filho e ainda o pressionar, via Justiça, pela reparação do que se tornou passado e nela se entranhou. Ainda que sua existência jamais volte a ser mesma pois perda foi letal.

De qualquer forma, o que este “Los Silêncios” provoca é não ver o confronto entre as forças revolucionárias em busca da construção de outra forma de sociedade como algo impossível. Ou aceitar a falsa ideia dos defensores do capital como o fim da história. Nenhum sistema político-sócio-econômico é eterno, haja visto o escravagismo, o feudalismo e agora o agonizante capitalismo. Hora existirá que ele não mais atenderá as necessidades das classes espoliadas e empobrecidas e novo e avançado sistema emergirá de suas ruínas. Queiram ou não, o velho gesta o novo.

Los Solencios. (Los Silencios). Drama. Brasil/França. 2018. 90 minutos. Trilha sonora: Nascuy Linares. Edição: Jacques Comets/Renata Linhares. Fotografia: Sofia Oggioni. Diretora/roteirista: Beatriz Seigner. Elenco: Marleyda Soto, Henrique Diaz, Adolfo Sanvivino, Maria Paula Tabares Peña, Àlida Pandura. Prêmios: Melhor filme pela crítica e Melhor diretora no Festival de Brasília de 2018.

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