Marília Gessa: O preconceito e a poesia

Lendo “Cabeça de Porco” (talvez pela milésima vez), parei um instante para refletir sobre um capítulo escrito por Luís Eduardo Soares intitulado “Ortopedias do Olhar” que fala sobre a educação dos nossos sentidos, em especial a educação do nosso olhar: só conseguimos ver aquilo que fomos ensinados a olhar, do mesmo modo que só comemos o que fomos ensinados a gostar de comer e assim por diante.

No Brasil, desde muito cedo, uma parcela significativa da população é ensinada a não enxergar os que provêm de uma classe social mais baixa. “Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível” (Athayde, C. et al. 2005. p. 175.).

Hoje no Brasil, cerca de 13 milhões de pessoas são condenadas à invisibilidade social, porque são moradoras de favelas. Essas pessoas, ao tornarem-se invisíveis, também não são escutadas. Afinal, seguindo o fio de pensamento de Luís Eduardo Soares, as pessoas só escutam aquilo que foram ensinadas a ouvir. E ninguém ensina uma pessoa a escutar o que lhe é invisível…

Assim, parte do Brasil fecha os olhos e tapa os ouvidos às manifestações das periferias e favelas de todo o país. E mais do que isso, cria um movimento contra os que, ao longo dos anos, fizeram-se ouvir. Acho que nada ilustra mais esse meu pensamento do que uma frase que encontrei em uma comunidade do Orkut há pouco tempo: “O Rap e o Hip-Hop são um câncer social e têm que ser combatidos!”. Traduzindo: “essas pessoas que fazem parte do hip-hop e que cantam rap devem voltar a ser invisíveis!”.

Os habitantes das periferias e favelas brasileiras permanecem existentes somente enquanto “ser poético”, no imaginário das pessoas. Por isso, ouvir Chico Buarque cantando sobre o guri é algo socialmente aceito, mas ouvir o guri cantar, não. Nunca foi. Exatamente por esse motivo, tenho enfrentado muitos olhos tortos desde que comecei a pesquisar os recursos poéticos presentes nas letras de rap, como as rimas por exemplo. Já foram muitas as vezes em que ouvi a pergunta: “mas o que há de poesia nisso?”. Esse “nisso” torna o rap algo pequeno e insignificante, ao contrário do que ele realmente é. Mas para muitos é fácil de entender porque na área de Letras estudamos os cantos indígenas brasileiros e de tribos africanas (que também compõem um grupo socialmente excluído), por exemplo, mas é quase impossível entender porque estudar manifestações da periferia brasileira e, mais difícil ainda, fazer ceder o preconceito para poder enxergar que na periferia se faz poesia de ótima qualidade.

Os rappers criaram um modo de comunicação que, ao mesmo tempo que informa, denuncia e procura produzir uma modificação na consciência do público a que se destina; também procura ser uma forma de entretenimento e de manifestação da “cultura de rua”. Mas, embora todas essas funções desempenhadas pelo rap sejam reconhecidas como importantes, a construção de uma poesia oral interessante e sofisticada através de recursos poéticos ainda não o são. As análises referentes à linguagem e à construção poética do rap recaem sempre no julgamento de seus estilos de fala como baixos e vulgares.

Embora muito diverso de uma cantiga de roda ou de um poema erudito, o rap é sim poesia, na medida em que compartilha com estes e outros gêneros poéticos o trabalho com três elementos básicos de qualquer língua: música, imagem e idéia.

A poesia procura usar a sonoridade das palavras e o ritmo das frases para criar uma impressão de música: “Igual aqui na vila. Vila miriam ou mirante desde antes dominantes. Veraneio cinza a noite.” (RZO. Pirituba parte 2)
Procura sugerir imagens através de palavras que estimulem indiretamente os nossos cinco sentidos: “Pior que eu já vi meu lado bom na U.T.I.” (Racionais. Vida Loka parte 2)

E procura evocar idéias através de palavras que traduzam noções abstratas: “Ordem, progresso e perdão / Na terra onde quem rouba muito não tem punição” (MV Bill. Só Deus pode me julgar)

Meu trabalho hoje consiste em listar, descrever e analisar os meios pelos quais os rappers controem imagens, musicalidade e idéias através das palavras, pois o que é realmente fascinante é que, através desse trabalho com a linguagem, os rappers dão vida própria ao que de outro modo só se exprimiria de modo banal, revelando a poesia de situações cotidianas tão privadas de beleza na vida real.

Marília Gessa: estudante do curso de Letras da Unicamp e pesquisadora do projeto: "A poética do Rap brasileiro: uma abordagem sociolingüística".

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor