Mickey 17 e o escapismo tecnológico
Modelo de desenvolvimento e colonização exploratória, que tanto fez estragos à própria Terra, é levado a outro planeta
Publicado 24/03/2025 11:40 | Editado 24/03/2025 10:41

O diretor sul-coreano Bong Joon-ho com certeza sabia que não tinha uma tarefa fácil pela frente. Depois de vencer o Oscar de melhor filme com Parasita (2019), primeiro filme em língua não inglesa a faturar na categoria principal da maior premiação cinematográfica do mundo, era óbvio que as expectativas a respeito de suas próximas produções iriam aumentar e que o sarrafo seria elevado para avaliar o seu próximo filme. A “solução” encontrada por ele foi investir em uma obra divertida, que se vale de um humor caricatural, talvez para se distanciar dos parâmetros de Parasita. Assim surge Mickey 17 (2025), em cartaz nos cinemas, que deixa claro que se vale de tons e tintas distintos da premiada obra anterior.
Mas não é nada fácil escapar do peso da crítica. Com um sarrafo elevado, alguns críticos têm apontado falhas e afirmado que este se trata do filme mais fraco do diretor, ainda que ponderem que ser um filme fraco dentro da filmografia de Bong Joon-ho ainda assim é algo bem relevante. Fato é que o longa-metragem, estrelado por Robert Pattinson, teve seu lançamento aprisionado pelas expectativas elevadas. Passados alguns anos, certamente Mickey 17 será valorizado por suas características intrínsecas e o tempo lhe será generoso.
No filme, Pattinson interpreta Mickey, um jovem que, tendo pouca formação e muitas dívidas, aceita ser usado para todo tipo de trabalho perigoso e degradante como parte de um programa de exploração espacial. Esses trabalhos com frequência o levam à morte, mas ele é sempre recriado, com suas memórias e seu corpo mantidos. Ele é, portanto, o que se chama de “descartável”, e justamente por isso pode ser usado nos trabalhos mais perigosos e degradantes. Apesar dessa premissa, o filme é divertido.
Se por um lado a filmografia de Joon-ho aprisiona esse lançamento em expectativas elevadas, por outro, ela nos ajuda a nos ambientar no universo do diretor e entender de forma clara suas propostas. A precarização do trabalho e a descartabilidade do trabalhador são questões pertinentes e óbvias em Mickey 17, principalmente se levarmos em conta que a luta de classes é assunto recorrente na obra do diretor. Podemos citar como exemplo O expresso do amanhã (2013) e o próprio Parasita, que também tratam do assunto com clareza. Mickey 17 tem muito dos dois, mas mais do primeiro (por se tratar de ficção científica e de retratar uma microssociedade que reproduz questões da sociedade mais ampla), além de beber muito da fonte de Okja (2017), outra obra de Joon-ho, por causa de certo tom fantástico adotado.
O novo filme aponta para muitas direções em suas críticas sociais e filosóficas: clonagem e identidade (o que faz você ser você?), exploração predatória da natureza, pureza racial e eugenia, populismo autoritário, tecnopopulismo, segregação de classe (o indivíduo “descartável” vale menos que as “pessoas normais”), relação entre alma e corpo etc. Por ser tão inflado de ideias, Mickey 17 se aprofunda em pouca coisa. Mas talvez isso faça parte de sua proposta. As questões são levantadas e seguidamente descartadas, tal qual o personagem de Pattinson. Entretanto, uma ideia vai crescendo na segunda metade do filme e ganha protagonismo. Trata-se da colonização e da relação entre colonizadores e povos nativos, aqui representada na relação entre os terráqueos, que fazem parte da expedição espacial, e os “rastejantes”, habitantes do planeta nevado que é candidato a substituir a Terra como nosso novo lar. Isso pode decepcionar algumas pessoas, pois o tema principal e óbvio, que era a precarização do trabalho, aos poucos cede espaço para este outro. Alguns críticos, desapontados com essa surpresa, reclamaram dessa descartabilidade de ideias.
“Parece um croissant mergulhado na merda”. Assim a personagem de Tony Collete – que junto com Mark Rufallo forma o casal caricato de vilões da trama – se refere à aparência de um rastejante. A estética repugnante desses seres nativos não é posta na tela à toa. Trata-se de uma opção estética para nos levar ao asco em relação a esses nativos para, pouco depois, sermos pegos no contrapé, ao descobrirmos que esses seres feios e esquisitos possuem capacidade de empatia, senso de coletividade e nível de organização bastante avançados, até mesmo para nossos padrões.
ESCAPISMO TECNOLÓGICO
Obviamente que, ao vermos o empreendimento de colonização predatória dos terráqueos pesar contra os rastejantes nativos, estabelecemos analogias com o que conhecemos dos processos de colonização exploratória que vimos em nosso planeta. Por exemplo, a colonização europeia promovida em detrimento de povos das Américas, África e Ásia. No filme, entretanto, a colonização interplanetária feita pelos terráqueos é resultante de algum tipo de cenário pós-apocalíptico no qual a vida na Terra se tornou degradante ou insustentável sem a exploração de mais e mais recursos e territórios, que seriam então obtidos com a dominação e o controle de outros planetas. Aliás, é justamente por conta dos riscos do empreendimento que um trabalhador descartável se torna necessário. Há muitos perigos no espaço e nos novos territórios, como vírus ou seres rastejantes famintos. Um descartável pode servir de bucha de canhão ou cobaia nas mais diversas ocasiões.
Em meio a tantas questões lançadas superficialmente no filme, esta tangencia várias delas: a de que a solução para problemas gerados na Terra pelo nosso avanço exploratório se dá (advinha!) com mais e mais exploração. E o desenvolvimento tecnológico seria o caminho, sempre a tirar um coelho da cartola para nos possibilitar a exploração infinita. É o que aqui chamamos de escapismo tecnológico. A historiadora Tatiana Roque (2021) desenvolve essa ideia. Ela explica que a história da humanidade nos últimos 300 anos, baseada em uma linearidade rumo ao progresso, é uma história excepcional. Essa visão de mundo, de que o futuro será sempre tecnologicamente mais avançado e mais próspero que o presente, tem sua base no Iluminismo e em um modelo de colonização europeia. Entretanto essa visão só foi possível nos últimos séculos às custas do uso desenfreado dos recursos naturais e do consumo de combustíveis fósseis. Ela não foi predominante na maior parte do tempo da existência humana e não é mais sustentável diante dos desafios contemporâneos.
Mas perante a necessidade de repensarmos nossos valores, há os que preferem dobrar a aposta na exploração capitalista. E o escapismo tecnológico representa essa dobra de aposta, valendo-se do desenvolvimento da tecnologia em busca de saídas milagrosas. Para que ampliarmos nossos cuidados com o planeta se podemos desenvolver tecnologias diversas suficientes para explorar outros planetas (inclusive a clonagem, para a criação de trabalhadores precarizados descartáveis que nos ajudarão nesse empreendimento exploratório espacial realizando os serviços mais difíceis)?
Roque nos lembra da fala de Sam Altman, CEO da OpenAI, criadora do ChatGPT, quando perguntado a respeito de como seria solucionada a alta pegada energética da inteligência artificial [1]. Isso porque o desenvolvimento e uso da inteligência artificial aumenta a demanda por eletricidade no planeta, o que se choca com as políticas de sustentabilidade. A resposta dada por Altman é o uso da fusão nuclear como forma de alimentação da IA. O problema é que, como explicam alguns pesquisadores, a fusão nuclear está distante de ser uma realidade que possa suprir a grande pegada de carbono da IA [2]. Logo, o que temos de concreto, de realidade imediata, é o desenvolvimento de sistemas e produtos tecnológicos que ampliam a demanda por energia. E para resolver isso? Não temos muito, só um suposto otimismo de seus desenvolvedores de que uma nova tecnologia virá solucionar o problema.
Há outros casos por aí que talvez possamos classificar como escapismos tecnológicos. Um deles vem da geoengenharia: a injeção de partículas (aerossóis) na atmosfera para tentar reduzir o aquecimento global. A ideia é aumentar o albedo da Terra, sobretudo na estratosfera, para que ela passe a refletir mais radiação de volta ao espaço e, assim, torne-se um pouco menos quente. O albedo é a fração da luz refletida em relação à absorvida por um corpo ou superfície. Em vez de investimentos em ações concretas para a redução de gases de efeito estufa, um tipo de gambiarra de geoengenharia surge no horizonte como pseudossolução.
Dentro da ciência, ao que me parece, estamos descobrindo a duras penas que essa aparente progressão técnico-científica leva a um ponto que não é sustentável. É um ponto irreal. E aí temos uma grande cisão. Há quem insista e dobre a aposta: ‘Se eu emiti carbono demais e mudei o clima do planeta, o que eu preciso agora é de uma tecnologia de captura de carbono. E com essa nova tecnologia a gente vai dar um passo além, tirar a consequência do carbono e seguir a vida como ela é, usando mais petróleo e fazendo de tudo’ (…). Essa vertente aposta ainda mais nesse conhecimento técnico-científico e diz que daí virá a próxima solução. E há uma outra vertente que diz: ‘olha, há essas outras formas de conhecimento, de manejo, que estão se mostrando muito mais sustentáveis a longo prazo’”, resume o divulgador científico e biólogo Átila Iamarino, sobre a necessidade de se buscar outros valores e cosmovisões para além da visão iluminista e capitalista de progresso [3].
Mickey 17 está longe de ser o primeiro filme a tratar desse problema. Em Não olhe para cima (2021), outra comédia, a temática é desenvolvida de forma bastante interessante. Um asteroide – que funciona como metáfora do risco das mudanças climáticas – está vindo na direção da Terra e irá destruí-la. Entretanto, em vez de as nações se unirem para destruí-lo antes que atinja o planeta, um bilionário CEO tecnopopulista (desses, tipo Elon Musk e Jeff Bezos), opta por uma missão pouco confiável, que é aproveitar partes do asteroide para extrair recursos minerais e, com isso, obter uma suposta prosperidade que seria distribuída a todos (tipo fazer crescer o bolo para depois dividi-lo, ou coisa parecida).
É a tecnologia como panaceia, que irá nos possibilitar exploração e desenvolvimento contínuos. Os robôs responsáveis pela extração de minérios no asteroide são o escapismo da vez. O plano dá errado. Mas o escapismo continua, pois a empresa responsável pelo plano absurdo possuía uma nave preparada para vagar pelo espaço por séculos até encontrar um novo planeta caso a extração dos minérios desse errado e a Terra fosse destruída. Claro que nessa nave havia poucas vagas, somente para alguns privilegiado$.
Mickey 17 é mais um desses bons filmes que retratam o uso capitalista da tecnologia a criar diversionismos, ou seja, a desviar o foco de problemas concretos e imediatos em busca de alguma suposta salvação que está no porvir, a depender de novas tecnologias. O filme poderia ter se aprofundado mais no quanto a tecnologia, que já foi vista como uma forma de amenizar o peso do trabalho sobre o homem, foi instrumentalizada para aprisionar esse homem em mais e mais trabalho? Talvez. No filme, a tecnologia inclusive é usada para, em nome do trabalho, replicar várias e várias vezes a vida de um homem, condenando-o a um trabalho perpétuo. Mas, retratar a tecnologia como um caminho para a expansão a outros planetas de um modelo de colonização exploratória que tanto fez estragos à própria Terra, é um achado bastante interessante que Mickey 17 proporciona.
Referências:
Roque, Tatiana. O dia em que voltamos de Marte: uma história da ciência e do poder com pistas para um novo presente. São Paulo, Planeta.
[1] Negacionismo e Crise de Confiança na Ciência <https://www.youtube.com/watch?v=s5-gUjbl49U>
[2] Sam Altman diz que fusão nuclear é solução para demanda de energia de IA <https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/sam-altman-diz-que-fusao-nuclear-e-solucao-para-demanda-de-energia-de-ia/#goog_rewarded>
[3] O que é Deus? – Podcast Não Ficção <https://www.youtube.com/watch?v=tcwAHNJkwfw>