Minha mãe não vem mesmo!

Os alunos repetem em unissono a frase ''Minha mãe não vem mesmo!'' todas as vez que seu nome é cantado durante a chamada. Só não sabem se a mãe de Zé, como ele é chamado pelos colegas não aparece pelo desgosto das inevitáveis reclamações, ou se é por não ter o acompanhamento de seus pais que Zé Antônio se tornou o pior aluno da escola.

No entanto, a reunião desta vez, não será para relatar as peripécias do Zé. Mas para os professores conversarem com os pais sobre os motivos de uma possível paralisação.

– O que pssora!? GREVE! EBAAAA! – gritam os alunos num alvoroço, já fazendo planos de emendarem a greve com as férias do meio do ano que custa chegar.

Mal sabem eles que já há reprovados. Só na função de secretário da educação já foram três: Maria Lucia Vasconcelos, Maria Helena Guimarães e agora foi a vez de Paulo Renato, ministro na época em que FHC ocupava lugar do Lula e eu ocupava o lugar de Zé Antônio na escola.

Us caras falam de cotas, que todos tem chances iguais para disputarem vagas nas universidades públicas em pé de igualdade. Será? Na quebrada onde moro, concluir o estudo médio, antes de ser preso, engravidar ou ser morto já é lucro.

As palavras tem poder. Lí um barato que me fez muito mal. Como se tivesse comido algo estragado. Se você tem estômago fraco não leia isso:

''Manual de autoajuda para supervilões

Ao nascer, aproveite seu próprio umbigo e estrangule toda a equipe médica. É melhor não deixar testemunhas.

Não vá se entusiasmar e matar sua mãe.

Até mesmo supervilões precisam ter mães.

Se recuse a mamar no peito.

Isso amolece qualquer um.

Não tenha pai. Um supervilão nunca tem pai.

Afogue repetidas vezes seu patinho de borracha na banheira.

Assim sua técnica evoluirá. Não se preocupe. Patos abundam por ai.

Escolha bem seu nome. Maurício, por exemplo.

Ou Malcom.

Evite desde o início os bem intencionados. Eles são superchatos.

Deixe os idiotas uivarem. Eles sempre uivam, mesmo quando não podem mais abrir a boca.

Odeie. Assim, por esporte.

E torça por time nenhum.

Aprenda a cantar samba, rap e jogar dama. Pode ser muito útil na cadeia.

Principalmente brincar de dama.

Ginga e lábia, com ardor. Estômago em lugar do coração, pedra no rim em vez de alma.

Tome drogas, pois é sempre aconselhável ver o panorama do alto.

Fale cuspindo. Super-heróis odeiam isso.

Pactos existem para serem quebrados.

Mesmo que seja com o diabo.

Nunca ame ninguém. Estupre.

Execre o amável. Zele pelo abominável.

Seja um pouco efeminado.

Isto sempre funciona com estilistas.

Joca Reiners Terron''

Meu irmão! Acredite ou não, essa merda é uma das muitas atrocidades publicadas nas cartilhas escolares entregue as crianças de 8 e 9 anos de idade.

Firmeza, se a aula era de revolta já passei de ano com nota 10. Manda meu diploma.

Não sou tão ingênuo ou sensível a ponto de me surpreender com material escolar da Editora Abril, mas deixa pelo menos o cara chegar na quinta série e ai vocês enchem os livros de Bandeirantes assassinos matadores de índios e negros e diz que são tudo gente boa.

''Eu conheço sua cartilha. Eu sei como você ganha suas medalhas de honra ao mérito porco imundo.'' Facção Central

Mapas com dois Paraguais, preconceito, palavrões é só o que podemos esperar de que quer nos manter intelectualmente acorrentados. Dizem que sou mau educado, é claro, fiquei trancafiado por mais de uma década nessas escolas.

E ainda tem os que perguntam por que eu escrevo. É porque precisamos de nossas próprias cartilhas, estas ai estão todas envenenadas.

Participei da história em quadrinhos Catraca Livre, idealizada pelo artista Alexandre de Maio. Interativa, o cara acessa e deixa de ser apenas um leitor para se tornar escritor.

Conversando com Alexandre, conhecido da revista Rap Brasil e desenhista dos quadrinhos, perguntei da onde ele tirou a idéia.

– Que? – assim que me dei conta – Não existe outra história em quadrinhos coletiva, interativa como esta? – insisti.

– Você conhece alguma Toni? – perguntou ele.

– Caramba! Você criou a HQ 2.0!

Essa cartilha sim, vale a pena conhecer.

Porque será que não distribuem, essa cartilha ai, nas escolas?

''Ativista moderno'' é o título da matéria sobre este que vos escreve, na capa do Boletim do Kaos, outra cartilha das nossas. Mantida pelo Alexandre de Maio junto com Alessandro Buzo. Fico grato pelo espaço e pelo título, mas não me sinto moderno. Enquanto os acadêmicos discutem a medieval pós-modernidade que produz cartilhas como a do Serra. Eu sou um dos milhares que constrói o tal do outro mundo possível a partir do subterrâneo. E isto eu chamo simplesmente de hip-hop. O que me parece mais atual, mais interessante e ainda mais significativa que moderno. Avisa o Lyotard

No dia em que os professores em assembléia, decidiram cancelar a greve. Eu montei na garupa de uma moto e sai pra próxima lição. Andando no fio da navalha onde só passa cachorro loco habilidoso, cortando os carros a milhão sentido a zona norte. Tenho como destino uma escola onde havia sido abortado o ato de ensinar. Os alunos eram indisciplinados, haviam graves problemas de vandalismo. A situação só se alterou quando este prédio abandonado foi adotada por três pensadores modernos.

No piloto da moto, Daniel, administrador, economista, futuro psicólogo. É fundador de uma instituição de educação infantil na zona sul paulistana, chamada Orpas.

Se quiser ver essas coisas não só no discurso, mas também na prática. Vá para Ribeirão Pires semana que vem. Onde acontece o Hip-Hop nas Escolas, realizado pelos Pontos de Cultura Hip-Hop a Lápis e Projeto Aprender. Misturando os elementos da cultura hip-hop com as disciplina escolares. Com a presença de Markão II (DMN), DBS (& a Quadrilha), Mano Axé (Império ZO) entre outros. No comando de Beto Teoria.

Também conversei com Cortecertu sobre educação, enquanto policiais atiravam em estudantes da USP. (Clique para ler)

Os 3 pensadores que resgataram a escola abandonada são Sóstenes, Sócrates e Rai, criadores da Fundação Gol de Letras. Onde conheci muita coisa, como a história de Zé Antônio garoto problema que reza o mantra: Minha mãe não vem mesmo!

Só não sabe o Zé que ele e o governador do estado onde ele estuda tem o mesmo nome.

E eu só não sei se Zé Antônio se parece mais comigo ou com você. Rebelde, morador de área de risco e com a família desestruturada. Também não sei se sua mãe não aparece na escola pela labuta de trazer o sustento para casa. Ou se Zé Antônio não tem mãe.

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Dedico este artigo a Fagner. Nordestino que morou no ABC Paulista , ensinou com exemplo o amor pela América Latina. Apaixonou-se por uma tica uruguaia, e foi morar em Montevidéu. Onde estive recentemente. Lugar bonito, tranquilo, enquanto Fagner atravessava o cruzamento com sua moto. Foi atropelado por uma viatura que avançou o farol. Fagner construiu a comunidade do Hip-Hop a Lápis no Orkut, que não para de crescer. Seu perfil ainda esta lá, mas ele não esta mais entre nós. Mas um jovem morto violentamente pela polícia. http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=11177861

Também ao Bezerra, colega de serviço no Portal Vermelho que perdeu sua mãe na madrugada de ontem.

Assista: É Tudo Nosso! O Hip-Hop Fazendo História. Parte 5 – M.C.

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