“Na Cama”: Virtude da mentira
Diretor chileno, Matias Bize, analisa comportamento da juventude moderna a partir da relação de um casal durante uma noite num motel, em Santiago
Publicado 25/05/2007 16:24
Em Santiago, Chile, um jovem casal de desconhecidos decide passar a noite num motel. Entre o sexo e as tentativas de não se desvendarem um para o outro, Bruno e Daniela se entregam ao riso, ao ódio, ao cinismo, às brincadeiras e, principalmente, a confissões que os despem mais do que expõem seus corpos nus. Estão ali, sobretudo, para desfrutarem do prazer que um pode dar ao outro, não para chegarem, aos poucos, à paixão. E ao amor, muito menos. Qualquer sentimento diferente seria burlar seus objetivos, daí preferirem se manter desconhecidos, cheios de camadas que tentam esconder um do outro, sem se darem conta de que assim se tornam símbolos destes tempos em que sentimentos valem muito pouco ou quase nada.
Com estes fios de ação, o diretor chileno Matías Bize constrói, em seu filme “Na Cama”, um rico painel das relações entre gêneros no mundo atual. Durante 86 minutos ficamos diante de dois personagens, Bruno e Daniela, fechados num quarto e confinados numa cama. Nada mais. São nesses exíguos cenários que eles desenvolvem uma relação que, devagar, vãos nos revelando suas personalidades, suas reações, os modos como cuidam de suas vidas. Bruno procura abrir-se pouco, falar só o necessário, enquanto tenta retirar fiapos da vida de Daniela. Está disposto a levar adiante seu intento de atrai-la, fazer com ela seja sua presa. Ela, Daniela, ciente dessa sua intenção responde com a mesma manobra. Nenhum quer sair de seu casulo, pois importa ali fazer sexo, retirar todo o prazer que o corpo do outro pode proporcionar, escapando de qualquer comprometimento.
Reflexos do comportamento da juventude dos anos 70
“Na Cama” seria um filme chato se ficasse neste vai e vem, que logo cansaria o público. Peter Yates, em “John e Mary”, no clima dos anos 70, tentou fazer a mesma coisa. Dustin Hoffman e Mia Farrow se encontram e procuram manter uma relação sem que suas identidades fossem reveladas. Deveria haver ali sentimento acima do que poderia se impor como nível social, portanto interesses e diferenças de classe. Em “Na Cama” a identidade deve ser camuflada para evitar que a realidade se interponha entre o casal e os impeça de ter uma noite de prazer. Várias artimanhas são usadas por Bruno e Daniela para manter acesso seu interesse pelo outro, dentre elas a mentira. A velha mentira que oculta, exige frieza, certeza de que o outro não adentrará a seu íntimo e, finalmente, não o desmascare. Entendemos isto quando ambos ocultam seus relacionamentos reais.
Então, em “Na Cama” interessa muito mais o que os personagens falam do que fazem. E, por mais que isto seja contraditório num filme que os coloca o tempo todo numa cama, é através dos diálogos que percebemos quem eles são. Ficam circunscritos ao colchão, ao edredon, ao lençol, movendo-se num espaço de carícias, de toques, de olhares e trocas de impressões. Daniela com seus olhos tristes, interrogativos, às vezes sucumbe, se irrita com as fugas de Bruno. Até surgir uma ligação e algo dela se desvendar. O mesmo ocorre com Bruno, ele escapa para um lado e outro e, de repente, é flagrado em plena mentira. Tal é o clima que ambos mergulham para manter acesso o interesse de um pelo outro, sem permitir intimidade maior. Qualquer deslize indicará quem é o outro de verdade; isso eles impedem acontecer. Num dado momento, eles se deslocam para outro espaço, o do quarto, do banheiro, deixando ao parceiro a oportunidade de bisbilhotar a realidade do outro. Neste instante, a falsidade, a crueza da manobra se revela.
Filme é cheio de sutilezas
Cada um deles é mais do que deixa antever. Tem mais segredos que o outro imagina. A câmara de Matías Bize move-se com agilidade e delicadeza ao mesmo tempo. Sempre atenta, em planos aproximados, em closes, para não deixar que nada fique longe do espectador. Os personagens se deslocam de um lado ao outro, mesmo no exíguo espaço da cama. E sem que isto “se transforme em cortes que fazem o filme andar”. A estética aqui é outra. A câmara pega o estado de espírito do personagem e o entrega ao público. Quando Daniela atende a um telefonema em plena madrugada e fala a conta-gotas, Bruno percebe que ela fugiu à identificação de seu interlocutor. A pessoa com a qual ela falara ao celular era alguém importante e íntima para ela. Idêntica situação viveria depois Bruno, ocorrendo o mesmo em relação à Daniela.
Estamos, assim, diante de um filme cheio de sutilezas. O sexo aqui deixa de ser o centro para ser acessório. Entre ele, o antes e o depois, importam os diálogos. São eles que revelam quem são Bruno e Daniela. Ele tenta se passar por intelectual, seu universo, no entanto, é dos shoppings-centers, dos bares da moda. Tem uma teoria de que se conhece uma pessoa pelos filmes que ela assiste. Desfila uma série de nomes de atores e títulos de filmes que mostram a superficialidade de sua cultura. Dão bem a idéia do quem ele é. Daniela, não, é mais contida, reflexiva, mais pé-no-chão, embora também tergiverse, minta, até ser envolvida por algo que não quer. Luta para escapar a esta inclinação, que porá tudo a perder. É quando, numa discussão sobre as conseqüências da camisinha, surge em sua inteireza a condição da mulher. Por mais que o homem tente se equilibrar na responsabilidade, a menor falha se recairá sobre ela.
Objetivo da relação é apenas obter prazer
Os dois discutem sobre sua possível gravidez e Bruno logo foge. Ela vacila, percebe aonde chegou com aquela relação fugaz, sem compromisso e sem qualquer outro objetivo senão ter prazer. A culpa se estabelece por instantes; ela logo volta ao equilíbrio. A conversa entre eles cria ao longo do filme outro espaço para além da cama e do quarto; o da vida real que levam lá fora. Cheia de pessoas às quais estão ligados, seres importantes para eles a ponto de ditarem seu comportamento no motel. Matías Bize cria, desta forma, uma obra onde o espaço externo e os personagens que o habitam são tão importantes quanto o que se passa aos olhos do espectador. Dá para vê-los, imaginá-los interagindo com Daniela e Bruno e influenciando-os em suas mentiras. Não mentiras que tenham grande peso, uma vez acertado, em comum acordo, que a vida real não deveria ditar as normas para aquela fugaz relação durante a madrugada.
O que se pergunta afinal é: o que de importante um filme como “Na Cama” pode trazer para o público que entra no cinema para se divertir ou sair do lugar comum? Depende do que o espectador busca num filme chileno, sem atores conhecidos, mas com boa acolhida em vários países e prêmios em diversos festivais, inclusive uma indicação ao Oscar de Melhor Filme, em 2006. E que mostra em menos de uma hora e meia uma relação a dois num quarto fechado, sem relação com o mundo exterior, de forma ágil e criativa. A bela fotografia de Gabriel Diáz e Christian Castro, o roteiro bem armado de Julio Rojas e a direção segura de Matías Bize formam um todo com as interpretações de Blanca Lewin (Daniela) e Gonzalo Valenzuela (Bruno). Conseguem com mínimos detalhes manter o público atento e surpreso com o comportamento dos dois jovens, em muitos aspectos iguais aos seus.
Sexo sem compromisso, no filme, se equivale a consumismo
O sexo sem compromisso em “Na Cama” se equivale ao consumir o corpo do outro, a cada um deles retirar todo o prazer que o outro lhe pode dar, sem levar em conta seus sentimentos. O outro está ali para lhe dar prazer. Esse consumo se multiplica em inúmeras facetas, em repetidas vezes, sem que se traduza em questões morais ou éticas. É só o prazer pelo prazer, sem outro objetivo. Revela a ausência de compromisso ditada pelas relações que levam em consideração apenas o aspecto exterior das pessoas. Suas emoções, seu mundo interior, pouco importam num sistema estruturado para o consumo de produtos dos quais muitas vezes não se precisa. O mesmo vale para o ser que o outro tem a seu lado: Bruno necessita de Daniela apenas naquela noite; Daniela precisa de Bruno só por aquela madrugada. Depois, cada um seguirá seu caminho, sem deixar endereço residencial ou eletrônico, como prometem um ao outro a todo instante.
Estão ligados de tal modo a este comportamento que se abstraem do que possa atrapalhar seus planos. Desligam-se até mesmo daquilo que é constante em sua vida. Numa seqüência, Bruno conversa com Daniela sobre filme pornô, enquanto zapéia com o controle remoto. Não se vê a televisão; só seus comentários. Ela se tornou unipresente, está em todo lugar e não está. Nem precisa aparecer. O único instrumento tecnológico que aparece, quase como um personagem, é o celular. Mais do que meio de comunicação é símbolo de status; uma forma de estar ligado a espaço exterior, que se intromete nas relações íntimas ao sabor do interesse de quem controlar a vida do outro.
Por meio dele – e não apenas dele – é que sabemos quem são Bruno e Daniela. Através dos diálogos entre eles conhecemos suas vidas e antevemos o que irá lhes suceder. Algo de errado ocorre com os dois jovens para chegarem ao ponto de manterem uma relação marcada para não perdurar. Qualquer sentimento, paixão, amor, deve ser riscada de suas vidas. No entanto, são seres humanos e Matías Bize nos lembra dessas suas características. E também sua inclinação de tomar o partido de Daniela: esta mais do que Bruno se desnuda, não deixa trair seu lado humano. É mais verdadeira. O final confirma esta sua tendência: a de, mesmo diante da crueza de Bruno, manter o interesse dele e não se entregar de tudo às mentiras. Não é fácil.
“Na Cama” (Em la Cama). Drama. Chile/Alemanha, 2005, 85 minutos. Direção de fotografia: Gabiel Diáz e Christian Castro. Roteiro: Julio Rojas. Direção: Matis Bize. Elenco: Blanca Lewin e Gonazalo Valenzuela.
(*) Melhor Filme e Melhor Roteiro no Festival de Havana e Melhor Filme nos Festivais de Montevidéu e Viña Del Mar.