Neoliberalismo travestido de Federalismo

De 1893 a 1895, frações das classes dominantes gaúchas foram às armas. Em disputa, os federalistas  (“maragatos” de lenços vermelhos) e os republicanos (“Pica-paus” de lenços brancos). Os primeiros, representando o latifúndio pecuarista e defendendo

A luta armada que assolou o Rio Grande do Sul, marcada pelo uso da degola, reacendeu os interesses regionalistas, reforçando uma leitura da concepção federalista implantada na Constituição de 1891. Oriundos, em maior parte, do liberalismo monárquico conservador, os federalistas viam no castilhismo o sinônimo do legalismo do jacobinismo florianista.


 



Nesses tempos, a Revolução Farroupilha, no início da República Rio-Grandense, já era uma divisa simbólica para os gaúchos. O 20 de setembro já era cantado em prosa e verso como a marca da identidade regional, sobretudo, alicerçada no discurso autonomista das classes dominantes locais. A Farroupilha servia como justificativa política para ambos os lados guerrearem.


 



Terminada a Federalista, a “pacificação” não terminou com o projeto político dos que afirmavam a autonomia estadual, como forma política para o enfrentamento com o Executivo Federal.


 



Em 1923, novamente republicanos e federalistas entraram em conflito. Depois de cerca de vinte anos de governo borgista, e após mais uma reeleição fraudada, os governistas chimangos enfrentaram a Aliança Libertadora, produto da reunião de integrantes do Partido Federalista, do Partido Republicano Democrático e de dissidentes do Partido Republicano Rio-Grandense. Estes últimos, como afirma Mário Maestri, confluíam politicamente na defesa dos interesses pastoris, defendendo que a Constituição Estadual convergisse com a Constituição Federal.  Esta orientação, traduzia-se na espera da harmonização com a república oligárquica de cidadania para os grandes proprietários, centrados no poder político de São Paulo e Minas Gerais.


 



Com o acordo de Pedras Altas se estabeleceu o fim daquilo que os liberais chamavam de “ditadura republicana”, através das diversas reeleições de Borges de Medeiros. O Tratado assinado no Castelo de Assis Brasil foi a base para a “Pacificação Rio-Grandense” e a futura construção da Frente Única Gaúcha, que levou Getúlio Vargas ao governo estadual. Dali sairia a organização da Aliança Liberal, reunindo os históricos opositores republicanos e liberais, a qual desembocou no Movimento de 1930.


 



A destituição do poder da Primeira República mobilizou os paulistas, alicerçados na defesa da reconstitucionalização do País, como mote político para voltar ao poder. Alegando mais uma vez  a defesa da autonomia estadual, foram às armas contra o poder central do Governo Provisório, em 1932, em luta contra o que chamavam, também, de “Ditadura Republicana”.


 



O Partido Republicano Paulista colocou em seu campo político os latifundiários do café e os industriais da FIESP, apoiados então pelos gaúchos Borges de Medeiros, João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor, Batista Luzardo e outros que haviam patrocinado Vargas dois anos antes.


 



Em 9 de julho, eclodiu a Constitucionalista, derrotada militarmente três meses depois. Mas o revés nos campos de batalha não resultou em derrota política. A futura conciliação entre Vargas e os paulistas, foi rápida, sobretudo no processo Constituinte, o qual resultaria na Carta de 1934. A burguesia agrária e a burguesia industrial passavam a ver em Vargas a liderança capaz de levar adiante seus projetos econômicos e políticos. No caso dos paulistas, a intenção de voltar ao governo central pelo voto foi se fortalecendo.


 



Ameaçado por possível vitória eleitoral de Armando de Salles Oliveira, ex-governador de São Paulo, nas eleições presidenciais de 1938, o governo Vargas forjou o “Plano Cohen” e deu o golpe em 10 de novembro de 1937, iniciando o Estado Novo. Restou à oposição liberal conservadora o exílio e nove anos de articulação para enfrentar a ditadura. Como resultado, no campo conservador, nasceu a União Democrática Nacional, símbolo do atrelamento da classe dominante brasileira ao imperialismo, em especial o norte-americano.


 



Esta orientação política, que atravessou  o período pós-45, derrubou Jango e construiu a Ditadura Militar, alicerçada na ARENA, se “modernizou” no pré-1985, formando a dissidência que organizou o Partido da Frente Liberal. Na conjuntura mundial de ascensão do neoliberalismo, a partir dos governos de Fernando Collor e  Fernando Henrique Cardoso, em especial deste último, ganhou o apoio do PSDB para a política de desmonte da soberania nacional e dos direitos dos trabalhadores.


 



Nos últimos anos, integradas em siglas partidárias, as classes dominantes regionais têm se aliado à lógica do imperialismo neoliberal. Esta frente, coordenada na Avenida Paulista pelo poder econômico dos grandes bancos e indústrias, tendo como núcleo partidário a aliança PSDB-PFL, com o apoio do PPS, patrocinou a candidatura conservadora de Geraldo Alckmin nas últimas eleições.


 



Derrotada nacionalmente, esta composição política foi vitoriosa no Rio Grande do Sul, elegendo para governar o estado Yeda Crusius, deputada federal tucana, e Paulo Afonso Feijó, líder comercial e quadro do neoliberalismo no Rio Grande do Sul.


 



A unidade neoliberal, vitoriosa eleitoralmente no estado sulino, provavelmente começou a ser construída na visita do então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, no “Tá na Mesa Especial”, tradicional almoço político organizado pela Federasul (Federação das Associações Comerciais e de Serviços do Rio Grande do Sul). O evento ocorreu no dia 27 de outubro de 2005, com o apoio das demais integrantes da União Empresarial do Rio Grande do Sul, como a Fiergs, a Fecomércio e a Farsul.


 



Na ocasião, Feijó produziu um discurso, em nome das entidades empresariais, se colocando “na luta contra os atos opressivos governamentais”.  Argumentou que as Instituições estavam “trabalhando, há tempo, em ação coordenada, na busca de uma força sinérgica para poder competir em pé de igualdade com a mão invisível dos governos e forças públicas”, única maneira que julgavam “eficiente para se tentar reduzir o gigantismo estatal e o seu alto grau de intervencionismo na esfera privada”. Dessa forma, defendiam “um Estado mais enxuto, fora dos afazeres privados, voltado às suas funções clássicas e básicas, quais sejam, assegurar os direitos à vida, à liberdade e à propriedade privada, princípios acima de qualquer ideologia ou partido político (sic)”.


 



O apoio político ao futuro candidato à Presidente, veio nas palavras de Feijó: “o ânimo do setor produtivo, Governador Alckmin, volta e meia retorna ao estado otimista, ao menos quando aparece no cenário político alguém sensato, avesso à retórica, com sensibilidade econômica e instinto dos caminhos que levam ao verdadeiro progresso. (…) Quando surge, por isso, um Homem Público voltado para o verdadeiro progresso econômico, a confiança volta a prevalecer no meio empresarial, como agora ocorre com relação à sua pessoa, Governador Alckmin.  (…) Não é para menos, Doutor Alckmin, que, no quesito “qualidade administrativa”, o Senhor ganhou a adesão de 85% dos empresários entrevistados em recente pesquisa da Vox Populi, percentual muito acima dos demais prováveis candidatos à Presidência da República em 2006.  Ninguém obtém tal grau de unanimidade, principalmente numa classe que conhece os caminhos do crescimento econômico, sem que a pessoa haja, de fato, trabalhado para merecê-la, e como o Senhor mereceu. (…) quero expressar, em nome da cadeia produtiva de nosso estado, associações empresariais aqui presentes, o nosso reconhecimento e a nossa solidariedade nos caminhos que hão de vir”.


 



Iniciado o segundo turno no Rio Grande do Sul, na disputa entre Olívio Dutra-Jussara Cony contra Yeda Crusius-Paulo Feijó, veio à tona a defesa da privatização do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), defendido por Feijó em discurso quando tomou posse na presidência da Federasul, em 2004.


 


De imediato, o vice-candidato do PFL foi retirado da linha de frente da campanha, suas manifestações passaram a ser controladas e, logo, passou a desmentir ou esconder sua opção privatizante. Mesmo assim, a Frente Popular ampliou seu apoio político, sobretudo nos movimentos sociais, mesmo que as cúpulas partidárias, que sustentaram o governo Rigotto optassem abertamente pela coligação “O Rio Grande Precisa Crescer”, como o PL, o PTB, o PP e o PMDB (de Eliseu Padilha, Darcísio Perondi e Pedro Simon).


 



Entretanto, as forças populares e antineoliberais foram insuficientes para vencer Yeda-Feijó, sobretudo pela crescente antipetismo no Rio Grande do Sul, alicerçado em uma pequena burguesia que se pauta majoritariamente na mídia que vem blindando o conservadorismo das classes dominantes gaúchas.


 



No discurso da vitória, ainda em 29 de outubro, na sede do Comitê de Campanha, Yeda se escudou no argumento Federativo para se posicionar em relação à reeleição de Lula. Repetindo os velhos argumentos históricos dos liberais conservadores – como em 1893, 1923, 1932, sobretudo revelado na representação simbólica de certa leitura sobre o Movimento Farroupilha -, que falam em nome da Nação para defender seus interesses particulares, mas não titubeiam em falar em nome da Federação quando um projeto nacional vai ao encontro de suas conveniências, Yeda se fundamentou na oratória sobre a “superação da crise econômica do Rio Grande do Sul”, como se não fosse atriz coadjuvante desta novela e como se seu partido não tivesse eleito três vice-governadores nos últimos dezesseis anos.


 



Falando em nome de um “realismo orçamentário”,  Yeda Crusius tergiversa para esconder sua orientação neoliberal de redução do Estado, com gerenciamento do Poder Executivo dirigido à lógica empresarial. O mesmo que dirigiu loas à Alckmin, no encontro da Federasul.


 



Na campanha do Rio Grande do Sul, um discurso despolitizado reforçou o argumento de que Yeda não era gaúcha, pois nascera em São Paulo. O caminho correto da crítica, timidamente utilizada em alguns programas eleitorais no segundo turno, devia e deve ser sobre a subordinação política ao programa das classes dominantes brasileiras, que tem na grande burguesia paulista, historicamente liberal e conservadora, privatizante e pró-imperialismo, seu setor mais arauto. É isso que explica a adesão de alguns gaúchos à Constitucionalista de 1932.


 



Tanto faz se você é carioca, seu pai paulista ou seu avô pernambucano. O que importa é que o Brasil está dividido em dois projetos: um, de retomada soberana do desenvolvimento nacional, rumo ao socialismo; outro, de dependência econômica ao capital estrangeiro. Esta é a encruzilhada histórica em que nos encontramos


 



O caminho da transformação do País deve ultrapassar os mitos do 20 de setembro e do 9 de julho. Seus discursos adaptados ao neoliberalismo aliam as forças conservadoras, paulistas e gaúchas, no rumo do atraso no desenvolvimento nacional e regional. Passado o pleito, os militantes dos movimentos sóciopolíticos transformadores, terão pela frente uma boa batalha, como sinalizou Jussara Cony, em 30 de outubro passado: a oposição cotidiana ao neoliberalismo. No Rio Grande do Sul, ele está travestido no federalismo e no “novo” jeito de governar.

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