No sábado gordo

Chegamos ao Alto da Sé cada um por si. A Ladeira da Misericórdia – de fato, um suplício – nos dá passagem para que ouçamos, miremos de cima, tambores ruidosos, tocados por moços vestidos de túnicas escuras. Não o maracatu de linhagem pura, mas sua imitação reverente, de respeitosos repiques. Zanoni, por certo, se recusa a olhar para trás; na custosa subida, não se queixa da obstinada magreza; dá-se conta apenas da “culpa” de quem fizera a escolha do Alto, das escarpas amuradas da Ladeira, onde as mãos socorrem o corpo na balaustrada, e a língua, sôfrega, suplica uma cerveja. Mas acudir-se na cerveja no primeiro sinal de cansaço seria primitivo… Ou confessar a diferença de idades entre o brancaleônico Zanoni e os moços percussionistas. Assim, sem se queixar do pesado par de botas, comum a operários da construção, mistura a língua com os passos, acareando sobre quem de nós fora o responsável pela “infeliz” escolha.

A boa deduragem caberia numa luva se os dedos apontassem para Urariano – contemporâneo do queixoso, ambos crescidos à sombra dos oitizeiros de Água Fria. Mas a curva dos anos é avessa a libelos forjicados, recua. Ainda insinuo no sentido contrário à razão, mas deixando escapar um riso cínico, debochado, no canto da boca. Ao que Urariano, cúmplice com o meu deboche, posto que exibindo um riso semelhante, defende-se. O autor da escolha, no entanto, ainda não chegara. Urdindo o esgar de espanto no rosto de Alfredo, rimos; dele e de nós forçando-o a sentar-se no banco dos réus por ter indicado o Alto da Sé para o encontro. O feliz Alto, cenário de tumultuosas conspirações, amores triangulados, traficâncias.

Alfredo flagra-nos já sentados, à mesa farta. O garçom em pé, à espreita de mais pedidos. Sentamos ao lado de uma das janelas do restaurante. No melhor lugar, ao lado da janela, onde o braço descansa, os olhos avistam o Outeiro do Carmo e, por trás, o Recife. Cedo-o a Spinelli, por julgá-lo com o direito ao privilégio por ser potiguar, morar em Natal, inda que nascido e criado sorvendo o cheiro dos oitis de Água Fria.

– Potiguar é a puta que pariu! – devolve-me ele, empertigando-se..

Insisto no gentílico por mais três, quatro vezes. Ele desiste do incômodo de mexer na biografia de estranhos; por achar-me incapaz de danos, por descobrir-se no uso de ofensa desproporcional a minha, avessa a seu feitio de honesto intelectual.

Spnelli, noutro tempo, desancara-me por ter visto – eu – a calcinha de Eliane Popó, numa das escadas de madeira do Colégio Estadual de Pernambuco.

– Mas a escada é helicoidal! Não pude evitar… – expliquei.

– Libidinoso, indecente! – insistiu.

Não me explicou, o verboso Spinelli, o fato de não ter me perdoado por ter me dado, a vida, a circunstância fortuita de apreciar o sedoso pano cobrindo a intimidade de nossa professora de sociologia. Eliane Popó, direitosa, viçosa, objeto das ambições íntimas de meu amigo.

Na Sé, a curva dos anos tem o conforto do vento sudeste; ele sopra no rosto de cada um, cúmplice do fluxo das palavras. Zanoni, no desfrute de cachaças, aprecia-as como a um licor; sorve-as sem fazer caretas. O cálice pequeno some-se, confunde-se com seus dedos finos. Quase não come, o magro Zanoni; bebe com gestos clericais, no contraste com os grossos coturnos nos pés. São três da tarde, faz calor. Ele usa meias.

Há em Alfredo a mesma indocilidade do estudante à espreita da hora conveniente de espalhar os panfletos. Não há perturbação em seu torso moreno, só os olhos passeiam inquietos, inquirindo nossos urdumes. Sua inquietação leva-nos à Bodega de Véio. Sabe que a rua é estreita, não há um metro quadrado livre, onde Zanoni possa dar liberdade a seus coturnos. Spinelli, mesmo sem ter confessado a razão de não beber, espreme-se entre o balcão e a parede; consegue um prato de frios. Urariano equilibra-se com duas cervejas numa das mãos; na outra, copos de plástico. Sentamos na calçada do outro lado. Àquela altura, Alfredo, que encontrara Nete, sua mulher, sumira no meio da multidão. Ao fim, nos levantamos. Na Rua Prudente de Morais, é a vez de Urariano extraviar-se. Procuramos uma barraca com a bandeira rubra dos comunistas. Não achamos. Prostrados, meio que cambados, fomos para casa.

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