O canto do cisne do PL nº 1.135/1991?

A ilegalidade demonstra o caráter injusto do acesso ao aborto seguro. Por que aquela que não pode pagar deve ser condenada às seqüelas e à morte?

A quem interessa manter o aborto clandestino no Brasil? Aos mesmos que se aliaram na Constituinte de 1988 para impedir que a Constituição aventasse ampliar os permissivos legais para o aborto ou a sua descriminalização. Isto é, à rentável indústria clandestina do aborto e à Igreja Católica Apostólica Romana.


 


 


Os mesmos que conformam a insana tropa de choque incrustrada no Congresso e que fizeram da oposição ao direito à liberdade reprodutiva a única razão de seus mandatos, a exemplo do deputado evangélico Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), relator do PL nº 1.135/1991 na Comissão de Seguridade Social e Família, da qual é também presidente, que suprime o artigo 124 do Código Penal (“Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos”).


 


 


O relatório do deputado viola a liberdade religiosa e a de expressão, estribado num discurso aparentemente irrepreensível se não fosse enganador: “o debate democrático não pode ser fechado a considerações religiosas, não se pode interpretá-las como motivações ilegítimas ou menores do cidadão”. Porém, arrematou: “Considerei então a religião em sua relação com o tema do aborto como uma relevante dimensão da vida individual capaz de formar os valores e as opiniões que o cidadão expressa nesta esfera pública”.


 


 


É acintoso que o deputado só tenha como repertório para decisões políticas a sua convicção religiosa; que use e abuse de argumentos simplórios contra as mulheres; e que se apegue ao que tipifica como “impopularidade do aborto” e sua “impropriedade como política pública”, com base no resultado da 13ª Conferência Nacional de Saúde, e afirme que “a proposta de descriminalização foi derrotada com 70% dos votos, o que representa não só a opinião generalizada da população brasileira, mas também um juízo crítico dos profissionais envolvidos com as políticas de saúde”.


 


 


Ainda conforme o relator, “Outro ponto a ser considerado é a questão religiosa e sua relação com a maioria dos cidadãos brasileiros sobre o aborto. Infelizmente, esse foi um ponto mal interpretado durante todo o debate na comissão. Não se trata de submeter as normas jurídicas aos desígnios religiosos, pois isso é contrário ao pressuposto de Estado laico adotado pelo Brasil. Contudo é pertinente considerar que a maioria dos cidadãos brasileiros, ao construir seus juízos de mérito sobre qualquer ação pública, levam em conta seu rol de valores pessoais, entre os quais se destaca muitas vezes a religião”.


 


 


Enfim, o PL nº 1.135/1991 chegou, por motivos mais do que conhecidos, sobretudo por omissão governamental, a um lugar em que entoa o canto do cisne. O que sinaliza para o governo que está mais do que na hora de sair do encurralamento a que se deixou levar pelos fundamentalistas religiosos e que cumpra o dever de quem governa um Estado laico: lutar por leis laicas. O governo precisa assumir que obrigar as mulheres a recorrerem ao aborto entre o pecado e o crime é insano, além de uma indução à sua mercantilização abusiva, em geral insegura e desencadeadora de danos irreparáveis à saúde mental e física das mulheres, quando não resultam em óbitos.


 


 


Como pode um Estado laico optar pela imoralidade de continuar negando um procedimento médico seguro, como o abortamento, às mulheres que dele precisam? Como pode continuar expectando que suas cidadãs pobres, apenas as pobres, imolem a saúde e a vida no abortamento inseguro, pois é público que em nosso país o aborto seguro é acessível a toda mulher que possa pagar por ele? Reafirmo que a ilegalidade de um ato médico seguro demonstra o caráter classista e injusto do acesso ao aborto seguro. Por que aquela que pode pagar tem direito à saúde e à vida e a que não pode deve ser condenada às seqüelas e à morte?

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