“O Céu de Suely”: Retrato de mulher

Diretor cearense, Karin Aïnouz,  usa a história de uma jovem de 21 anos, mãe de um recém-nascido,  para situar o papel da mulher brasileira nas relações de gênero

De que matérias devem ser feitas as mulheres de hoje para suportar as desilusões e, depois, reconstruir suas vidas? Às vezes podem recorrer a medidas extremas para garantir sua esperança e continuarem vivendo. Suas opções ganham contornos inusitados, mas uma vez entendidas parecem as mais lógicas. A lógica advinda da frustração da relação amorosa, do descompromisso do parceiro e da falta de esperança de uma vida melhor, leva-as a se valer de si mesmas para continuar vivendo. Não é outro o caso de Hermila (Hermila Guedes), personagem central de “Céu de Suely”, do diretor cearense Karin Aïnouz. Jovem, 21 anos, ela regressa à sua cidade natal, Igatu, no interior doe Ceará, com o filho de colo, para, junto com o marido, que ficou em São Paulo, reiniciar a vida, montando uma banca de CD e DVD. Uma opção, sem dúvida, pelo caminho inverso ao que fizerem muitos de seus antepassados, que transformaram a capital paulista na “terra da promissão”.


 



             
Cheia de vida, ela vai montando seu caminho, revendo antigos lugares e amigos, rememorando histórias e freqüentando forrós enquanto o marido não chega. E ela, nesse novo papel da mulher, é a bandeirante, aquele que abre caminho, para depois assentar acampamento. Assim, acredita ela ( e Aïnouz faz com que o público também acredite nisto), quando o companheiro chegar o espaço já estará prospectado. Afinal, Hermila tem idéias, conhece a cidade, tem muitos amigos e a família para lhes ajudar. Ocorre que a esperança não é um estado de espírito compartilhado por todos, depende da moral, da ética e do compromisso da época. Nestes novos tempos, mudou o papel da mulher e, se antes já não era difícil trocá-la por outra vida ou por uma nova perspectiva, agora ficou muito mais difícil. Basta a distância para que os laços se rompam.


            


 “Meu filho só tem vinte anos…”


             
Hermila, tomada pela esperança do recomeço, analisa as possibilidades do negócio que montará com o companheiro, o espaço da feira, as relações que terá de empreender para que isto aconteça. Suas iniciativas não são diferentes das de tantas mulheres que procuram abrir caminho adverso ao que se acostumou. No seu caso, um reencontro com sua terra natal e com seu sonho. Faz isso, no entanto, por sua conta e risco, pois os laços que a unia ao companheiro logo se mostrarão ilusórios. E irão se romper numa conversa com a sogra (Marcela Cartaxo) a quem levara o filho para conhecer. Trocam palavras que mais parecem códigos que nenhuma parece atentar até que surge a frase que define seu papel de mulher, que optou por abrir caminho para o “casal”.



             


Ela, Hermila, quer saber se a sogra tem notícias do filho: “Meu filho tem só vinte anos, o que você quer dele?”, lhe responde a mulher com o neto no colo, ao que ela responde: “Seu filho é um…”. Todo o peso de uma decisão, compartilhada com o companheiro, recai sobre ela. Justamente o que poderia uni-los, os separam. Cabe a ela, tão só a ela, remontar sua vida, a partir de nova perspectiva, mesmo que isto lhe custe o sacrifício extremo. Não é diferente de milhões de mulheres Brasil afora, que sustentam suas famílias, sem a presença do companheiro (ou do ex). Este o universo presente em “Céu de Suely”, filme em que as mulheres conduzem suas vidas, sem lamúrias ou choramingas por não terem homens a seu lado. Estão nesta situação, a avó, Zezita (Zezita Matos), que cuida da casa, a tia, Maria (Maria Menezes), que mora que a mãe, a sogra que, aparentemente, mora sozinha, e a prostituta Georgina (Georgina Castro), que se vira no posto de gasolina.


 


                


 “Fragilidade feminina” de nada vale


                 


O único homem, João (João Miguel), que surge nesse universo, é reticente, moralista, conservador, e nutre por Hermila um sentimento desapropriado para as relações que sustentam: fugidia, superficial, sem compromisso. Os demais são sombras que se movem e reagem com músculos e murros. Ela, pelo contrário, enquanto ainda tinha esperança na chegada do companheiro, procurava fazer uns trocados com uma rifa, que vendia aos amigos, no posto de gasolina, na feira e para o próprio João. Até que descobre a verdade, suas esperanças ruem e ela se entrega a outro jogo; o de se virar pela forma de mercadoria. Numa cena, aparentemente descompromissada, ela toma conhecimento da economia do sexo, das trocas e serviços, ganhos e posições.  Numa conversa com Georgina, esta lhe dá dicas sobre seus rendimentos com os caminhoneiros, sem culpa ou tendência ao moralismo barato comuns nestes casos.



                


Hermila é fruto de sua época histórica, em que choramingar, usar a chamada “fragilidade feminina” de nada vale, principalmente diante de sua situação de abandonada e desiludida. O que lhe importa é arranjar uma maneira de escapar à cidade que de solução virou pesadelo. E, sem se importar com o tamanho da cidade (90 mil habitantes, distante 380 km de Fortaleza), a reação da avó e os comentários alheios, ela parte para o uso do único produto que realmente interessa ao sexo oposto nessa ocasião: a venda do próprio corpo. Sem dúvida uma forma rápida de sair do impasse em que havia se metido ao se transferir de São Paulo para o interior do Ceará. Uma cidade com a estrutura urbana igual à de milhares de cidades brasileiras, com sua periferia, feira-livre, mercado e um subproletariado que se move nesse espaço à procura de saídas como ela.


 


                


Corpo como moeda de troca


               


 


Sua decisão atrai a ira da avó e de outras mulheres e comentários desabonadores da tia, até que esta, ao reencontrá-la, comenta entre a malícia e a inveja, que sua rifa a fez cobiçada pelos homens da cidade. Ela não era mais Hermila, mas Suely, um mito, famosa por ter-se colocado a prêmio. Uma dualidade comum nesses casos em que o prazer, o desejo, une-se ao dinheiro, tendo o corpo como moeda de troca. Hermila/Suely se presta a este jogo: o de unir o impulso de evasão com a necessidade de ter recursos financeiros para bancá-los. Não é mais a esperança, o sonho, mas tão só o escape, a urgência de fugir de uma situação vexatória, a de ser ludibriada pelo companheiro, não o de oferecer o corpo em troca de dinheiro, para, enfim, construir sua vida em outros termos. Aïnouz poderia, sem dúvida, sair pelo caminho moralista, de um retorno a São Paulo ou a outro lugar, com a rifa original que ela montara, preferiu outra forma de redenção: a de dar algo mais precioso em troca da fuga.



            


É como se ele dissesse: na falta de uma melhor opção, a mulher tem em seu corpo sua própria saída. Não é de chocar. A mercadoria mais exposta nas relações de troca capitalistas é o corpo da mulher, na forma da propaganda, no incentivo ao duplo desejo: da mercadoria que vende (e muitas vezes não se quer, nem se precisa) à sugestão de que tê-la é alcançar certo prazer só dado pelo sexo. Sexualização e desejo então se confundem. A começar pela moda _ Hermila atesta isto a toda hora com suas vestes minúsculas – que reforçam o estereótipo da mulher enquanto mercadoria: vende o produto e a modelo e, com isto, movimenta a indústria da moda, de bebida alcoólica, entre outros produtos, planeta afora. Ou a oferta da celebridade nua numa revista, como se a democratizar sua intimidade, porquanto o que se faz é vender sua imagem in totum: ela deve ser produto não só na passarela ou na tela da televisão, mas também ao natural. Rendem, com isto, outros tantos milhões que fazem girar toda uma indústria que se nutre do produto-celebridade.



            
             


Uma inversão de “ Proposta Indecente”


           


 


Portanto, quando Hermila se vale de si mesma para escapar à desilusão, atende aos ditames de sua época histórica – de que seu corpo pode se transformar num produto – e isto é trabalho, não uma recaída moral – atende a seu papel de mulher, que tem de se valer desta iniciativa para não sucumbir à coisa pior: a prostituição. Alguém poderá ver nisto a inversão do que sofreu Demi Moore, em “Proposta Indecente”. No filme de Adrian Lyne, o milionário interpretado por Robert Redford lhe oferece um milhão de dólares para que passe uma noite com ele. Uma proposta – dupla – indecente, tanto da narrativa de Lyne, quanto do tema em si, típico de Hollywood. Em “Céu de Suely” estamos em outro universo, o dos desafortunados que, para sobreviver, vão ao extremo.  Um extremo em um nordeste árido, de vegetação rasa, escassa, com os mesmos problemas dos demais centros urbanos brasileiros.



           


Aïnouz, com a colaboração do diretor de fotografia Walter Carvalho, passeia por esta geografia desnudando-a do conteúdo místico e rústico a que se acostumou o público. Em “Céu de Suely”, a paisagem deserta, cortada pelo asfalto, atesta a mudança, mas conserva os mesmos párias e desenganados de sempre. Não é outra a maneira de ver os homens que pululam em torno de Georgina e Hermila no posto de gasolina e no forró. As próprias mulheres trazem nos rostos a aridez da cidade, porém, o fazem com um ferro-de-passar-roupa nas mãos. O que Hermila não quer. Tornou-se um novo ser, por isso não busca mais permanecer na cidade, nem quer outro parceiro, que a segue estrada afora e dela nada consegue.


 


         


Filme não louva os desenganados


        


 


A aparente simplicidade de “Céu de Suely” é a mesma dos demais filmes que pontuam a produção nordestina dos últimos anos. Não louvam os desenganados, tampouco os incensa. Olha-os com o ar de quem mostra a vida que levam e as opções que buscam. Não há teorização sobre os desmandos do sistema; as razões para eles estarem ali recaem sobre eles mesmos. Talvez seja esta a fragilidade desses filmes. Não basta expor uma situação vivida pelas minorias (no caso das mulheres, são maioria em todo o país) para dizer que tomou posição. Sempre faltará algo a acrescentar. Alguém, no caso a burguesia nacional, manteve sob controle os descendentes daqueles personagens vistos em “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, e “Deus e o Diabo da Terra do Sol”, de Glauber Rocha. Isto, por si, já se torna algo escandaloso.



         


Difícil exigir que perdure a “estética da fome”, mas um cinema terceiromundista, por melhor que seja tecnicamente, continuará sendo dependente (de capital e de mercado) e massacrado pelos centros de irradiação de produtos audiovisuais, sob o domínio dos EUA. Uma forma de enfrentá-los, sem dúvida, é expor de maneira competente nossas contradições. O olhar que daí brotar abrirá uma fenda na gigantesca armadura do imperialismo cultural. Mesmo com estes senões “Céu de Suely” penetra nas entranhas desse nordeste, fonte inesgotável de temas e estética, o que já é um grande avanço. Com a vantagem de não usar, para não padronizar, transformar em clichê, rostos saturados pela TV. Tiraria toda a carga dramática e conteudística da história e dos personagens, gente do povo, que enfrentam problemas de sua classe e de seu país. E permite que o público assuma, sem disfarce, a sua própria realidade: a de que as desigualdades de gênero e de classe são uma realidade neste Brasil de norte a sul.


 


http://www.oceudesuely.com.br/home.htm


“O Céu de Suely”. Brasil/França/Alemanha, drama, 2006, 88 minutos, Roteiro: Maurício Zacarias, Felipe Bragança, Karim Aïnouz, baseado em argumento de Maurício Zacarias e Karim Aïnouz. Fotografia: Walter Carvalho. Direção: Karin Aïnouz. Elenco: Hermila Guedes, João Miguel,  Marcela Cartaxo. Georgina Castro, Maria Menezes. Prêmios: Troféu Redentor (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz(Hermila Guedes) do Festival do Rio de Janeiro 2006; Melhor Filme e Melhor Atriz (Hermila Guedes) do Festival de Havana 2006; Melhor Roteiro, Mérito Artístico e Prêmio Fipresci do Festival de Salônica, Grécia, 2006.
 

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