O discurso do vereador

 O vereador se deu por contente, depois de ter ocupado o microfone da tribuna por vinte minutos; além do tempo regimental, conforme o presidente da Câmara. Não que seu discurso fosse consistente de argumentos; fora empolado, como de costume, e ainda encompridado pelos apartes. Seus colegas, os do mesmo partido, pouco ou nada se desviaram da retórica balofa. Sentiu-se grato, ele, por ver que a sonoridade de seu discurso não se perdera na acústica do plenário.

  – Sua Excelência é mais que um tribuno, é o farol da estiva na resistência do cais bravio do Recife.

– Sua Excelência tem na voz o músculo do estivador. A saliva de suas palavras confunde-se com o suor copioso do trabalhador do cais.

Sinvaldo Sinésio saíra de casa com o melhor de seus ternos. A gabardine lustrosa, simétrica no corte de trás, na aba de cada um dos lados do paletó, dir-se-ia ser a continuação de seu rosto triangulado, com um nariz comprido e tão fino quanto o bico de uma ave rapineira.

Os elogios dos aparteantes, em vez de encorajar o bulício de estivadores nos dois lados da galeria do plenário, embaraçaram-nos. Não se confessaram insatisfeitos, mas o empolamento dos discursos lembrou-lhes de cada palavra dita na assembleia de manhã, na beira do cais. Inda que a curva do vento ou o assovio de seu sopro fosse estorvado pelos navios atracados na beira do cais, cada orador soubera esticar a corda da voz para falar.

– Nenhum homem na escada do convés!

– Não desamarrar a mercadoria do guindaste!

– Nenhum operador de máquina sentado na boleia!

Três navios de carga, com toda a carga nos porões, à espera que os guindastes içassem para fora a mercadoria embarcada em continentes distantes. Os práticos, pagos depois da abordagem, não quiseram se juntar à turba tumultuosa de estivadores; bem pagos, e à vista, escolheram uma mesa à sombra da calçada do Whisky Bar. Dali poderiam dar sumiço nos primeiros trocados do dinheiro recebido pela manobra bem sucedida, de orientar as embarcações da costa para o cais.

De cada convés ou do parapeito deles, capitães de cabotagem, contramestres e taifeiros, apreciavam confusos, curiosos, a inquietação dos estivadores.

À tarde, ainda suados, os estivadores seguiram para a Câmara de Vereadores para ouvir o discurso prometido por Sinvaldo Sinésio. O acerto fora feito pela manhã, no cais. Sinésio confessara sua preocupação com a interrupção do trânsito na avenida na margem do cais, e com o abastecimento das oficinas dos jornais da cidade, que receberiam os rolos de papel da celulose extraída no Canadá, na França…

– Quer que os jornais recebam o papel? Dê apoio à nossa greve!

Franzino, o vereador quase não tivera coragem para fitar cada um daqueles olhos; enchera-se de orgulho, imaginando que os votos que obtivera na eleição, também provieram de subúrbios com moradias de estivadores.

– Vocês terão o meu apoio e de toda bancada do meu partido.

Se a elegância de Sinésio infundira nos estivadores, a ilusão de que o piquete na beira do cais obtivera um apoio importante, após seu discurso, o terno do vereador desbotou aos olhos dos operários da estiva.

Do lado de fora da Câmara, reuniram-se. Formou-se uma comissão para negociar os termos da adesão de Sinvaldo Sinésio à greve. Quando a campainha, de dentro do plenário, soou dando conta do fim da sessão, a comissão de oito estivadores subiu pelo elevador rumo ao gabinete do vereador.

– O discurso do senhor foi tão bonito, mas não citou as nossas reivindicações! – adiantou um troncudo estivador.

– Como? Vocês não me disseram nada sobre o aumento que estão pedindo.

– E o senhor não lê os jornais? Não viu as dezenas de faixas do sindicato, onde está o percentual de aumento que nós queremos?

– Quando vocês terão outra assembleia?

– Amanhã de manhã, na mesma hora da de hoje.

– Eu me comprometo a comparecer, a usar o microfone do sindicato para formalizar meu apoio à greve.

Sinvaldo Sinésio foi à assembleia. Encontrou um cordão de policiais isolando os estivadores da Avenida Alfredo Lisboa, na margem do cais. Não pediu licença aos policiais, para falar com o comando do piquete. Na calçada do Whisky Bar, um dos práticos da barra, seu amigo, chamou-o. Ele sentou-se, recusou a bebida oferecida.

Rompido o cordão de isolamento, os piqueteiros saíram em marcha rumo à Avenida Rio Branco, para o centro do Recife. Não viram que o vereador, incomodado pela miúda bexiga, apressara-se para o sanitário.

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