O Fantasma de Stalin

“Sessenta e sete anos depois sua morte (1953), Stalin continua a assombrar as belas almas”.

É quase impossível encontrar nos grandes meios privados de comunicação social (jornais, TV, rádio) do bloco liberal-imperial algo mais do que objurgatórias e condenações litúrgicas de um personagem de enorme importância histórica, que dominou a política soviética e internacional durante mais de um quarto de século.

A situação não é muito melhor em ambiente universitário. Não me parece que o consenso predominante nos meios acadêmicos ocidentais tenha mudado substancialmente em relação à satanização de Stalin durante a guerra fria. Há uma minoria de filósofos, historiadores e outros intelectuais de estatura que nadam contra a corrente, mas predomina no ambiente político e ideológico europeu o “pensamento único” neoliberal, empenhado em assimilar o comunismo ao nazismo e Stalin a Hitler, classificando-os como “totalitários”. O exercício do contraditório só é assegurado quando intelectuais de grande estatura, comoDomenico Losurdo ou Annie Lacroix-Riz, intervêm no debate. Ainda assim nos limites que lhes impõem os donos da notícia.

No Brasil, dispomos da tradução brasileira de Stalin, história crítica de uma lenda negra (Revan, 2010), de Losurdo e do artigo “Segunda guerra mundial: a União soviética par por perdas e lucros” (Le Monde Diplomatique, maio 2005, pp.24-25), de Annie Lacroix-Riz. O grande historiador e filósofo político italiano (falecido em 2018) refere no título o critério político que orienta seu livro: a expressão leyenda negra foi forjada por intelectuais espanhóis para rebater a hipocrisia da Inglaterra liberal, que acusava a Espanha de ter cometido as piores atrocidades em suas colônias, “esquecendo” os enormes crimes que ela própria cometia em seu império colonial. Um crime não pode ser desculpado por outro, mas a função das lendas negras é fazer crer que os criminosos são sempre os outros. Muitos dos que se horrorizam com as violências do poder soviético não manifestam sobressaltos éticos perante o extermínio em alguns minutos de cerca de 200.000 japoneses pelas bombas atômicas lançadas pelos estadunidenses sobre Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. No entanto, considerando o critério objetivo da quantidade de mortos por unidade de tempo, esta foi a maior operação de extermínio de toda a trajetória do homo sapiens.

Lembrei esses dados para uma jornalista da Folha que me enviara perguntas relativas a uma reportagem sobre Stalin que ela estava preparando. Não se tratando de uma entrevista, antes de uma espécie de questionário, também enviado a outros destinatários, era previsível que ela selecionasse o que mais lhe interessava. Ela fez seu trabalho com seriedade profissional, mas deixou de lado não somente os dados acima referidos sobre o caráter seletivo da indignação anticomunista, como também uma referência ao pacto nazi-liberal de Munique. Retomo-a aqui:

“Interessados em lançar Hitler contra a União Soviética, os círculos dirigentes das grandes potências liberal-capitalistas aceitaram o rearmamento acelerado do “Reich de mil anos”. Entre 1936 e 1938, eles permitiram que a Alemanha nazista e a Itália fascista contribuíssem decisivamente para o esmagamento da República espanhola. Em 29 de setembro de 1938, Daladier e Chamberlain (chefes de governo respectivamente da França e da Inglaterra) assinaram com o regime hitleriano o pacto liberal-nazista de Munique, que autorizou a Alemanha, a Polônia e a Hungria a esquartejarem a Tchecoslováquia. A União Soviética, que mantinha um tratado de defesa mútua com o governo tcheco, foi deixada fora das negociações, ao passo que Mussolini foi amistosamente recebido”.

Empenhado em assimilar o comunismo ao nazismo e consequentemente em ocultar a criminosa cumplicidade franco-britânica com Hitler, o anti stalinismo mediático recorre ao vale tudo em matéria de falsificação ideológica. No Brasil, a mais grosseira com que nos deparamos nesse assunto ficou por conta do jornalista Elio Gaspari. Em 14 de fevereiro de 2016, na página que lhe é reservada na Folha, após dar sua contribuição à campanha reacionária contra o governo Dilma, ele acrescentou um tópico intitulado “Pacto de Munique”, onde a propósito da tentativa de restabelecimento do CPMF, que dependeria de “um acerto com o deputado Eduardo Cunha”, ele estabeleceu grosseira analogia entre esse suposto “acerto” (que nunca ocorreu) de Dilma com o malfeitor que presidia a Câmara Federal e “o Pacto de Munique, assinado pela União Soviética e a Alemanha nazista em 1938”. Mentira descarada ou ignorância espessa? Difícil admitir que o importante jornalista desconhecesse um fato que consta de qualquer manual elementar de história (ou verbete da Wikipedia). Churchill, a despeito de seu ódio aos soviets, classificou a capitulação de Chamberlain em Munique com uma sentença profética: “A Inglaterra tinha de escolher entre a guerra e a vergonha. Escolheu a vergonha e terá a guerra”.

Em “1939: o pacto de não agressão e a hipocrisia anticomunista”, publicado em coluna do Vermelho, dia 29/10/2019, assinalei que durante os onze meses seguintes ao infame acordo franco-britânico de Munique com Hitler, os dirigentes soviéticos continuaram empenhados, com o apoio do movimento operário e antifascista europeu, em montar um sistema de “segurança coletiva”. Mas a opção preferencial dos governos britânico e francês continuava sendo entrar em acordo com os nazistas. Annie Lacroix-Riz, uma das mais importantes estudiosas atuais das relações internacionais, revelou que somente em 5 de agosto de 1939, quando já se tornara evidente que as pretensões territoriais hitlerianas não tinham se esgotado com as anexações concedidas pelos acordos de Munique (agora o Führer exigia da Polônia o corredor de Dantzig), britânicos e franceses enviaram uma missão militar a Moscou, com o objetivo de acalmar a opinião antifascista que, após a anexação alemã da Boêmia-Morávia e a satelitização da Eslováquia, pedia uma frente comum com a URSS. Mas os chefes da missão, o almirante inglês Drax e o general francês Doumenc, admitiram ao chefe do Exército Vermelho, Vorochilov, que lhes propôs, em 12 de agosto, o exame concreto dos planos de operação contra o bloco dos Estados agressores, que não tinham poderes para negociar. Foi quando os dirigentes soviéticos replicaram à farsa dos dois impérios liberais com uma brusca inversão de sua linha diplomática: em 23 de agosto de 1939 assinaram o pacto nazi-soviético de não agressão, réplica, nem mais nem menos imoral, mas estrategicamente lógica, ao pacto nazi-liberal de Munique. Ganharam com isso quase dois anos, já que a ofensiva hitleriana contra o país dos soviets só foi lançada em 22 de junho de 1941.

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