O fator militar no governo Bolsonaro – 2: Núcleo racional?

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Bons comentadores políticos têm apresentado o grupo de militares (quase todos generais) convocados para integrar o governo de Bolsonaro como um núcleo de racionalidade no meio de um coletivo virtualmente caótico, onde os únicos que têm ideias claras sobre o que pretendem são o banqueiro ultraliberal e o justiceiro que trocou a toga pelo bolsonarismo. O resto é uma bizarra galeria de videntes, malandros, fanáticos bíblicos, unidos pelo ódio às Luzes e pela subserviente identificação com o “Colosso do Norte”.

Tal como vem sendo entendida, a racionalidade atribuída aos militares significa moderação e objetividade. O esperado efeito moderador é óbvio: segurar os profetas de maus agouros, os obscurantistas mais tenebrosos e os malucos de todo gênero. O efeito de objetividade tem sido anunciado pelo vice Mourão em entrevistas e outras tomadas de posição, em que, desmentindo em linguagem sóbria a sandice de declarações inspiradas pelo delirante extremismo ideológico do presidente eleito, recomendou não comprar brigas que não podemos vencer.

O fato de que o general Mourão na prática esteja falando em nome dos militares participantes do governo Bolsonaro (os demais assumem um laconismo taticamente habilidoso) confirma a hipótese de que ele é um delegado da cúpula das Forças Armadas, cuja “racionalidade” ele encarna. Esta, até agora, se expressou em atitudes de bom senso. “Algo es algo”, como dizem nossos vizinhos do Cone Sul. Mas se Bolsonaro insistir em atropelar o bom senso de Mourão, um cenário de confronto poderá se configurar.

Antes, porém de prever lutas intestinas no campo da direita governante, convém ter em mente que por maiores que possam vir a ser as restrições do aparelho militar ao presidente, este lhe permitiu voltar ao núcleo central do poder de Estado sem tanques na rua nem ruptura frontal das instituições. A violência ao espírito e até à letra da Constituição ficou por conta dos golpistas de 2015-2016, que já passaram à história como protagonistas do avanço do fascismo e da instauração de um regime híbrido de exceção. Mas no conturbado e deformado processo eleitoral de 2018, os generais atropelaram a já contundida democracia para exigir que o STF mantivesse Lula preso, contribuindo assim decisivamente para o sucesso eleitoral do candidato da extrema-direita. A partir do atentado contra Bolsonaro, o dócil Toffoli, eleito em 8 de agosto presidente daquela corte cada vez menos “suprema”, aceitou uma inédita e bizarra modalidade de tutela: a “assessoria especial” do general Fernando Azevedo e Silva, ex-comandante do Estado Maior das Forças Armadas. Graças a esse arranjo no mínimo heterodoxo, Lula continua preso e a extrema direita comemora o velho refrão: ao vencedor, as batatas!

Em que sentido essa evidente função tutelar sobre o poder de Estado assumida em 2018 pela cúpula das Forças Armadas faz parte da “racionalidade” militar? A situação histórica que mais se assemelha à atual e que, portanto, pode nos proporcionar alguns elementos comparativos para responder a essa questão é a que conhecemos entre 1985 e 1990. Em 1984, a ditadura em via de extinção logrou bloquear no Congresso a imensa mobilização nacional pelas “diretas já”. A eleição de Tancredo Neves, em 1985, por um colégio eleitoral inventado pela Constituição autocrática de 1967, configurou um mal menor para as forças democráticas. A alternativa teria sido a eleição de Paulo Maluf. Porém a gravíssima infecção que impediu o presidente eleito de tomar posse, criou um impasse. Poderia o vice de Tancredo, José Sarney, assumir a presidência em seu lugar? Alguns achavam que, estando o presidente eleito impedido de tomar posse, tampouco seu vice poderia fazê-lo, cabendo ao presidente da Câmara Federal, Ulysses Guimarães, assumir interinamente o cargo. Na noite de 14 de março e na madrugada de 15, a questão foi intensamente discutida nas altas esferas do poder.

A decisão final, tal como ironicamente comentada por Ulysses Guimarães, elucida o primeiro ato decisivo da tutela militar. Elogiaram seu gesto magnânimo de renunciar a disputar com Sarney o direito de assumir a presidência. Ele replicou: “Eu não fui bonzinho coisa nenhuma. Segui as instruções dos meus juristas. O meu Pontes de Miranda estava lá, fardado, e com a espada me cutucando e dizendo que quem tinha de assumir era o Sarney”. Pontes de Miranda (1892-1979) era então considerado um paradigma de jurista eminente. Já o “Pontes de Miranda” a que se referia Ulysses era o general Leônidas Pires Gonçalves, designado ministro do Exército por Tancredo. Avisado de que este estava em situação crítica, submetido a operação urgente no Hospital de Base de Brasília, o general correu para lá, juntando-se aos grandes personagens reunidos numa sala do hospital. Ao tomar conhecimento de que estava sendo discutida a opção Sarney ou Ulysses, declarou taxativamente “de acordo com a Constituição, artigos 76 e 77, quem toma posse é o vice-presidente, o Sarney”. Juridicamente a questão era discutível. Mas o argumento da ponta da espada era muito convincente.

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