“O Hospedeiro”: Monstro Real

Obra  do diretor sul-coreano, Bong Joon-ho, recria clichês de “filme de monstro”  para produzir terror, que reflete situação vivida pela população sul-coreana
            

Pretensão pode causar sérios danos em obras que se pretendem arte. Quando ela se materializa em filmes puramente comerciais, os resultados podem ser surpreendentes. Principalmente se diretor e roteirista não se importarem em reciclar clichês e retratá-los com técnica apurada. Em “O Hospedeiro”, o diretor sul-coreano Bong Joon-ho une terror, suspense, trilher, ficção científica e comédia, para, durante 119 minutos, entreter o público. Esta mescla de gêneros poderia degenerar numa colcha de retalhos, a exemplo de “Godzilla”, transposição para o cinema do seriado de TV japonês, exibido na década de 60. Joon-ho, no entanto, consegue levar para a tela uma história com a devida clareza e equilíbrio, a ponto de não se perceber a repetição de situações, advindas dos velhos “filmes de monstro”, notadamente o “Monstro da Lagoa Negra”, de Jack Arnold, uma obra-prima, hoje esquecida. Seus personagens, o monstro e as situações são plausíveis e o cenário em nada difere do cotidiano.
                    


 


 


A facilidade com que o público se identifica com os personagens e a normalidade da criatura surgida do rio Han, que corta Seul, capital da Coréia do Sul, são alguns dos trunfos do filmes. Nada de seqüências em que cenas e situações são truncadas, de modo a criar a sensação de que algo incompreensível irá acontecer para aterrorizar pessoas já suficientemente aturdidas em seu cotidiano. Joon-ho torna crível a história desde o início quando o cientista norte-americano (Scott Wilson) obriga seu subordinado sul-coreano a derramar dezenas de vidros de uma substância química perigosa para o meio ambiente, diretamente no esgoto que leva ao rio Han. Daí, numa combinação de apresentação dos personagens centrais, a família de Hee-bong, e localização do espaço onde transcorrerá a ação, ele arma a trama, cheia de reviravoltas. Não há, como se percebe, a costumeira figura do cientista louco ou o burguês ganancioso impulsionando a história.


 


 


Situação remete à
presença dos EUA na
Coréia do Sul

                   


 


Em “O Hospedeiro”, a ameaça vem da posição do cientista americano, que pouco liga para o perigo que correrá a população, embora tenha sido advertido pelo subordinado sul-coreano sobre tal risco. Joon-ho introduz, desta forma, o comentário sobre a destruição do meio ambiente, com a conseqüente modificação da fauna e flora, a ponto de gerar o monstro, mescla de peixe, dinossauro e lagartixa, que aterroriza os clientes de Park Hee-bong (Bieon Hie-bong) e os freqüentadores do parque à beira do rio Han. Um comentário que remete à ocupação da Coréia do Sul, pelos Estados Unidos, desde o início dos anos 50, quando da hoje esquecida guerra da Coréia, que dividiu os dois países (a outra é a Coréia do Norte, comunista). Através de sua base no país, os EUA influem nas relações entre estas nações e bloqueiam a possibilidade de elas encontrarem a saída comum para as relações entre o mesmo povo.
                


 


O monstro tem, assim, uma função, a de amedrontar e de lembrar o perigo que representa para a tranqüilidade da família Hee-bong e dos freqüentadores do parque.  Versátil, ele não choca por sua forma, até encanta pela agilidade, a maneira como ataca suas vítimas e depois as leva para seu esconderijo. Ele é real, plausível porque se sabe como foi gerado. E parece invencível, pois, ao contrário dos demais monstros, é inteligente, cheio de artimanhas. Numa cena, ele parece adormecido, mas, de repente, surpreende sua vítima com um simples mover de rabo. Sua indestruvidade, uma das características dos monstros clássicos, vem de sua mutação, provocada pelo produto químico lançado ao rio. Diferente de seus congêneres, dos quais pouco se sabe de onde vêm, toda sua gênese é compreensível. Com isto, não se quer dizer que ele não tenha mistérios, ele os possui, mas estes advêm das combinações já descritas. No entanto, representa o que divide a população e a coloca sob o controle do Governo, que não sabe lidar com a situação por ele criada.


 


 


Núcleo familiar
se desintegra
ao estar sob risco


               


 


Já se disse que o medo que esses monstros provocam advém do temor de as pessoas perderem sua segurança cotidiana. Hoje tais afirmações caem no vazio diante dos perigos enfrentados no dia-a-dia nas grandes e pequenas cidades. Há, porém, um núcleo a ser preservado em meio a esta intranqüilidade geral: o da família. Esta é, comumente, o centro da ação, na maioria dos filmes de suspense, policiais e de monstro. Nada de novo. Em “O Hospedeiro”, para escapar ao clichê, ela não é certinha, com tudo no lugar; é disfuncional, ou seja, cheia de contradições, fraquezas e fracassos. A começar pelo avô, Hee-bong, solitário, obrigado a cuidar do filho Park Gang-du (Song Kang-ho), com problemas de comportamento, da neta, Hyun-seo (Ko Ah-sung), a mais ativa do grupo; do filho Park Nam-il (Park Hae-il), recém-formado e desempregado, e da filha Park Nam-ju (Bae Du-na), exímia arqueira do time olímpico sul-coreano, mas sem suficiente ambição para vencer o campeonato nacional. Dono de um quiosque no parque, dele tira sustento para todos eles, inclusive anima-os a superar suas diferenças e acreditar em suas capacidades. Difícil equilíbrio que logo se romperá.
              


 


Quando o equilíbrio se rompe, com o rapto da neta Hyun-seo, o velho Hee-bong se põe a caçar o monstro, junto com os filhos. Um artifício comum aos “filmes de monstro” em que a ameaça recai sobre a família ou um de seus membros indefesos. Em “O Hospedeiro”, é Hyun-seo que cumpre esta função. O público se identifica com ela logo nas primeiras cenas, por ser meiga, delicada e sagaz. Nela é depositada toda esperança para a família sair da disfunção. O monstro não a tem como alvo, pega-a na multidão que o rodeia, a princípio curiosa, depois atemorizada. Não é surpreendida ou simplesmente atacada, mas levada de roldão. Juntos foram vários rapazes e moças. Nesse aspecto o monstro não é seletivo, ataca a quem está em sua frente, desafiando-o. E a própria multidão tem comportamento adverso ao do visto em centenas de filmes deste gênero. Não foge ao surgimento dele, quer saber o que é, de onde saiu. Se a família de Hyun-seo quer reavê-la, a multidão não recua, entra em disputa com ele. Testa sua vulnerabilidade até não poder vencê-lo. Então, esta tarefa fica para a família Hee-bong.


              


 


Mídia é uma das vilãs do filme


            


 


A cada seqüência, o diretor Bong Joon-ho retrabalha os clichês de forma nova. Introduz a fragilidade do agente do governo que vai interrogar os que tiveram contato com o monstro e começa por cair, numa cena hilariante. Não tem informações sobre o estranho animal, sugere que o grupo confinado num hospital as busque na televisão. Só que ao fazê-lo, não as encontra. Nem tudo, claro, está na televisão, ela não é unipresente, por mais que tente ser ou venda a idéia de que seja, diz Joon-ho. E critica o costume atual de o público buscar explicações na mídia para seus problemas. Estão em outro lugar, muitas vezes em si mesmos. Mas perdeu a capacidade de refletir sobre o que o rodeia. Há todo momento, o diretor lembra o espectador desta necessidade de desconfiar. Injeta-lhe esta desconfiança também em relação aos cientistas e médicos que procuram tratar de Gang-du, quando este é tido como infectado pelo monstro, de duas formas. Numa ao rever o clichê de que ninguém acredita no que ele diz sobre o paradeiro de sua filha, noutra ao atestar que ele, ao ser infectado, ficou imune a medicamentos e cirurgias. De uma forma quase sutil, desmentindo inclusive a capacidade de médicos e cientistas saberem realmente o que aconteceu com ele.                   
           


 


Médicos e cientistas, enfiados em trajes que lembram seus congêneres de “ET”, de Steven Spielberg, ficam aparvalhados, tecendo comentários deslocados, fazendo diagnósticos logo desmentidos pelas reações de Gang-du.  Como a mídia, não tem credibilidade alguma para tratar dele ou contribuir para a elucidação da gênese do monstro. Mais atrapalha do que ajuda. Sua inutilidade fica mais patente ainda quando usam o produto químico, agente amarelo, para liquidar o monstro e o fazem sem conseguir tirar a multidão do parque, que, mesmo diante do perigo, não se afasta da beira do rio Han. O único elemento de ligação entre a vítima e sua família é o “senhor da informação atual”: o celular. Ainda assim só funciona quando une dois pólos da ação e não expande a comunicação. Só faz ao ser usado numa trama urdida para usos pouco éticos. Como se percebe, Joon-ho, através de um filme de monstro, põe estereótipos de cabeça para baixo, para tornar a ação vívida. Os efeitos especiais não estão ali para realçar capacidade tecnológica, sim para fazê-la avançar. Não aparecem mais que os personagens. Quem predomina em “O Hospedeiro” são os seres humanos. Seu drama é que interessa.


          


 


 Herói enfrenta monstro com coquetel molotov
 
            


 


Sob este aspecto, é um filme simples, narrado com uma clareza surpreendente. Sua linearidade faz o público acompanhar a história e reagir nos momentos certos. Quando ri é porque a cena é engraçada, quando se agarra à poltrona é porque o horror ameaça a família Hee-bong, quando teme pelo pior é porque o monstro parece indestrutível. E foge da trama amorosa, que torna a mocinha indefesa, o herói invencível. Nada disso há em “O Hospedeiro”. Nenhum personagem alcança a redenção. Ele está ali para enfrentar situações contemporâneas, ditadas pela negligência ou má intenção de um cientista americano, desdenhoso com a vida do cidadão comum sul-coreano. Uma arrogância mostrada a todo instante no filme, sempre ridicularizada por Joon-ho. É o vilão, embora não configurado num personagem que aja como tal durante toda a história. Está implícito, é o moto, a razão de tudo aquilo que se desenrola na tela.  Torna-se, então, mais perigoso do que o monstro. Este, nas impressionantes cenas em que o engenho tecnológico falha, mostra-se indefeso, enquanto o vilão continua a ameaçar. Na explicação que o Governo dos EUA dá sobre o dano causado à população sul-coreana, via mídia, isto fica patente. Só que perdeu credibilidade para convencer às vítimas de sua inocência.
               


 


Sem subterfúgios, Joon-ho une diversão e crítica política numa obra comercial, feita para provocar sustos. As seqüências em que parte da família de Hee-bong enfrenta o monstro, sem parafernália tecnológica, são primorosas. Imagens limpas, de forte conteúdo simbólico, encantam pelo enquadramento preciso. Em tons azulados, vermelho e amarelo, reforçam o confronto mortal entre os oponentes, longe da multidão, que, a todo o momento, se faz presente. A indecisa Joon-Non, com seu arco, e seu irmão Nam-il, com a arma de seus tempos de estudante, o coquetel molotov: inexistem símbolos mais fortes do que estes. O arco medieval e o engenho das batalhas políticas de rua, contra o monstro germinado cientificamente que a todos ameaça. E, ainda que afastada pelo exército e a política sul-coreana, a multidão sempre disposta a enfrentar também o monstro. É indispensável  à luta, atesta Joon-ho, sem ela não haveria resistência.


                


 


Diretor burla clichês de “filmes de monstro”


                 


 


Como se vê, “O Hospedeiro” é um filme voltado para a diversão, que burla os clichês e termina virando uma obra de denúncia contra a destruição do meio ambiente. Visto sob este ângulo dá uma grande contribuição ao consolidar a criatividade do cinema asiático e ampliar a temática do “filme de monstro”, com o uso adequado de efeitos especiais. Porém, o que há sob esta camada de ação e de trama em que o monstro rapta membro de família disfuncional e figuras anônimas da população, é uma denúncia do tratamento dispensado pelos EUA aos sul-coreanos, com a justificativa de que cuidam de sua segurança diante do “perigo” representado pela Coréia do Norte, mas que, na verdade, se transformou numa ocupação. Sutileza que o espectador mais atento saberá ler e identificar, como fizeram os que viram, na década de 50, “Invasores de Corpos”, de Don Siegel, que trata do medo que os americanos tinham de uma “invasão soviética”. Também no cinema se conta uma história que, se analisada a contento, diz mais que muitos artigos e obras, tidas como profundas.


 


 



“O Hospedeiro” (Gwoemul). Terror. Coréia do Sul/Japão. 2006. 119 minutos. Roteiro: Baek Chul-hyun, Han Won-kun e Bong Joon-ho. Fotografia: Kim Hyung-ku. Direção: Bong Joon-ho. Elenco: Song Kam-ho, Byeon Hie-bong, PLark Hae-il, Bae Du-na, Ko Ah-sung, Scott Wilson(A Sangue Frio, No Calor da Noite, O Grande Gatsby).



                                

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