O legado de Eleonora Brieba

Quis o destino que o braço direito de Eleonora Brieba ficasse tão fibroso quanto as veias de seu pescoço fino. As veias do pescoço eram somente visíveis, visto que sua pele, branca e transparente, dava conta das entranhas vizinhas. Na juventude, sequer as veias davam sinais de vitalidade. 

A pele fora branca por toda a vida, inda que de um branco leitoso encorpado; já agora, na idade das fêmeas que têm na libido uma lembrança tênue de quando o sexo movia-se fogoso, o tecido do corpo deixou-se encolher feito cabras no frio.

O excesso de ureia forçou-a a se submeter a seguidas sessões de hemodiálise. O braço com a fístula disponível, logo mostrou-se disforme com fibras e veias se sucedendo em artérias altas e baixas de nervos magros. Ela passou a usar blusas de mangas compridas, floridas e em combinação com os brincos em forma de borlas largas e luzentes. Pouco se distinguia em sua documentária volumosa, o que fizera questão de mostrar na juventude, com o uso do vestuário escasso.

Ora… Eleonora Brieba desataviara-se dos dotes naturais da idade tenra. Mas herdara dos pais o engenho, os animais de tração, o sobrado de varanda larga no centro de Goiana, meia dúzia de casas na beira-mar de Pontas de Pedra. Também herdara o primo com quem se casou, a rogo e crente na convicção dos pais, de que jamais teria que se promiscuir com homem de outro sangue que não o da própria família, de origem ultramarina. Verdade que enviuvou e não teve filhos, inda que deixando suspeitas de que as tramas do sexo em família poderiam traduzir-se numa cria com defeitos nas juntas, provável objeto de rejeição. Por isso mesmo, quando mostrava-se na varanda do casarão, tinha no rosto, além dos berloques nas orelhas, o orgulho nos olhos de sobrancelhas pinçadas, o batom vermelho soltando pingos de vapor à luz do sol, anéis e pingentes nas duas mãos.

Convém acentuar-lhe o perfil, na referência aos três irmãos que nunca se casaram; tiveram mulheres, mas nunca se casaram. Seria estranho ver o sobrado encher-se de fêmeas em cujas veias corria um sangue desconhecido. Os rapazes, todos mulherengos, tinham nas entranhas o critério do tesão sem rumo. Não convinha ao casal ultramarino ter que fazer carinhos em netos sem os narizes rubicundos como os de toda a família. No entanto, a pujança sexual dos filhos sempre fora motivo de orgulho para os pais. Eleonora Brieba, por ser a mais velha, adquiriu a tutela dos irmãos e administrou os bens como uma sinhá zelosa do patrimônio e atenta às regras seculares da família. Assim, os três irmãos juntavam-se ao lado dela, sem queixas, conformados aos mimos de Eleonora; mesmo porque, não lhes faltava o quinhão correspondente na conta bancária.

Foi num sábado ruidoso, posto que o reboliço da feira punha a cidade atenta aos petiscos que seriam servidos no domingo, sobretudo nas mesas das sinhás, que Eleonora Brieba vestiu-se como nos dias de recém-casada. A blusa amarelo-ouro cobriu todo o pescoço, com uma coroa do mesmo tecido na altura do queixo. O pano sedoso tinha desenhos de folhas escuras; não se sabia bem de qual ramo da flora, mas em perfeita sintonia com os cílios pontudos de seus olhos. As mangas da blusa, é bom dizer, cobrindo os braços, mal se distinguido as veias fibrosas num dos dois. As pulseiras e os anéis, bem como as borlas dos brincos, tudo em Eleonora Brieba dançava ao mais leve volteio de seu rosto. Usara vestidos brocados na juventude, ainda mais depois de casada, para ouvir o ruído do tecido quando, indócil, dava ordens aos criados para pôr os utensílios de cada aposento conforme seu raciocínio barroco. O marido fora enterrado há muitos anos, e Eleonora Brieba vestiu uma calça comprida tão justa no corpo esguio, que se podia presumir haver carnes ainda tenras, protegidas pela pureza do algodão da cor de chumbo da calça.

Seguindo-a no ritual, os irmãos vestiram-se; sem pompa, mas com o asseio natural de quem evitava contato com a terra bruta, para não ter calosidade na sola dos pés. Ela sentou-se no banco de trás do Sedan cuja cor acobreada confundia-se com a seda de sua blusa. O irmão que sentou-se de seu lado tinha um jeito próprio de viver; não se casara, como os outros, mas por razões que só confessava nos arruados distantes, depois de se entender com um parceiro que tivesse os olhos castanhos como os seus.

No clube, outras sinhás tinham se instalado em mesas em volta do salão. Restaram algumas, mas nos fundos, ao lado do palco onde a orquestra tocava rumbas e boleritos nunca esquecidos pela juventude que, crendo-se educada no bom gosto de cada escolha, ouvia Bievenido Granda.

No meio da noite, poucos eram os casais que permaneciam sentados. Moços e moças trocavam passos e balbucios. Eleonora Brieba e os irmãos foram cumprimentados, inda que ninguém, mesmo com afinidades de classe, se sentasse para reiterar a solidariedade entre os donos de engenhos.

Ao fim da noite, os quatro se levantaram. Eleonora Brieba não tivera outro comensal em sua mesa, a não ser os do costume. Quando pôs o pé direito no hall para descer os degraus da larga porta do clube, acorreu-lhes um casal amigo. Convinha desejar felicitações ao espécime quase findo da aristocracia rural. Ela, para mostrar a coragem que herdara junto com o patrimônio da família, arregaçou a manga da blusa do braço direito e expôs o que os anos lhe legara:

– Vejam. Não tenho medo de mais nada.

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