O modelo científico e a dependência tecnológica no Brasil dos generais

“A única finalidade da ciência está em aliviar as canseiras da vida humana”. (Galileu Galilei, físico italiano do século 16 e um dos fundadores da ciência moderna).

Quando Dom João VI decidiu fundar o Museu Real, no Rio de Janeiro, em 1818, iniciando, com grande atraso, à moderna investigação científica no Brasil foi preciso resgatar em dinheiro o incipiente conhecimento existente sobre a realidade nacional. O patrimônio inicial do museu, de fato, foi adquirido junto ao mineralogista alemão Abraham Werner, um dos fundadores dessa ciência e também professor do futuro “patriarca da independência”, José Bonifácio de Andrada.

As leis da ciência são válidas em qualquer lugar ou tempo, independente das fronteiras políticas e dos sistemas econômicos. Mas, ao mesmo tempo, é totalmente falso que o esforço que foi preciso desenvolver para se chegar a estas leis universais tenha sido o mesmo em qualquer país.

Dom João VI precisou comprar o acervo de um cientista alemão porque, com exceção de alguns casos isolados, não se fazia pesquisa no Brasil, até então. As dificuldades estavam relacionadas com o papel de Portugal na colonização do nascente país.

Embora tivesse absorvido e cultivado a brilhante ciência surgida na Europa durante o Renascentismo, a atrasada metrópole portuguesa caiu logo em seguida sob o domínio intelectual da contra-reforma religiosa. A partir daí, não só deixou de preocupar-se apenas com o desenvolvimento científico como, também, perseguiu ativamente os que, em Portugal e suas colônias, se aventuraram nessa atividade por conta própria. O Brasil sofreu as consequências disso desde a sua descoberta e ainda não havia se livrado delas no final do século 20.

A vinda do rei de Portugal para o Brasil modificou a situação da colônia. Revelando a preocupação de não deixar o conhecimento da realidade nacional nas mãos de estrangeiros, a criação do Museu Real – depois Museu Nacional – permitiu que a pesquisa científica fosse, pela primeira vez, realizada de forma organizada no país tupiniquim. Com minguados recursos e espírito de pesquisa incipiente, o Museu avançou pouco, tendo em estrangeiros como Emílio Goeldi, suíço, e Henri Gorceix, francês, figuras de proa desse primeiro esforço nacional.

A questão do desenvolvimento científico independente do País era, portanto, um problema antigo e complexo. Sob o Regime Militar – que indubitavelmente expandiu a economia brasileira com base no endividamento externo – o que aconteceu? Evoluiu a pesquisa científica? De que forma ela se ligou à meta de promover um desenvolvimento autônomo e autossustentado no Brasil?

Com a ascensão do Regime Militar os pesquisadores brasileiros tornaram-se uma comunidade em rápido crescimento, fato que se verifica com facilidade. Um exemplo: A Universidade de São Paulo tinha três mil estudantes em 1935, ano de sua fundação, e em 1960 ainda contava com apenas 9,5 mil alunos. Em 1980, o quadro discente da maior universidade brasileira havia mais que triplicado, saltando para 30.934 alunos. Ainda mais impressionante havia sido a progressão dos pós-graduandos: eram apenas dois em 1935, 110 em 1965 e cinco mil em 1970. Além disso, o orçamento do Estado passou a contar com uma parcela cada vez maior destinada à ciência e à tecnologia.

No entanto, embora fosse extremamente difícil de medir com precisão o volume da produção científica de um país, os cientistas brasileiros afirmavam, na década de 1980, que a nossa ciência permanecia extremamente atrasada em relação aos grandes centros internacionais. Em 1975, embora o Brasil fosse o quinto país em população, números divulgados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) mostravam que o País não passava da vigésima-nona colocação em número de trabalhos científicos publicados: nesse ano, o Brasil produziria um trabalho por cem mil habitantes, enquanto nos EUA a proporção era de um por 1,5 mil habitantes; na Argentina, um por 24 mil; e no Chile um por 36 mil.

A conclusão que acompanhava esses números era a de que nos países mais desenvolvidos a ciência avançava fortemente amparada pelo Estado e estreitamente ligada à economia, enquanto no Brasil as pesquisas já chegavam prontas, através das filiais das grandes empresas multinacionais sediadas entre nós. “Essas filiais e o governo brasileiro”, declarou – no inicio da década de 1980 – o professor Juarez Lopes, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), “não estimulam a demanda de tecnologia e pesquisa científica”. A afirmação se reforçaria no dizer do engenheiro Milton Vargas quando, em uma palestra proferida em 1984, afirmara: “Uma das características mais notáveis da ciência moderna é a de ela não ser uma criação individual (…) não há como se distinguir o saber científico da sociedade onde ele vive”.

Por aí se vê, em retrospectiva, que os planos do Regime Militar para a ciência continham duas ideias desastrosas: primeiro, a de que os cientistas não devem meter-se na política, mas dedicar-se candidamente à ciência por si mesma, como uma coisa desligada do mundo real; segundo, a concepção de que o pesquisador brasileiro não deveria ter a pretensão de ‘reinventar a roda’, mas ganhar tempo absorvendo a ciência e a tecnologia já prontas, criadas nos países desenvolvidos. Ou, como disse, em 1977, um dos grandes cientistas brasileiros, o geneticista Newton Freire-Maia, limitar-se “a resolver tarefas menores”, dentro da ciência mundial.

Na realidade, nem o papel de uma ciência pobre – preocupada apenas com a adaptação de conhecimentos básicos desenvolvidos por outros – estávamos em condições de desempenhar. O físico José Goldemberg, em 1975, embora ressaltando a enorme importância das verbas destinadas à ciência no Brasil, afirmou que estávamos ainda muito longe de nossas necessidades reais. Nossa verba de 1974, segundo Goldemberg, era de 400 milhões de dólares: quatro dólares por habitante, uma ninharia face à taxa dos EUA (110 dólares per capita). Pior do que isso, afirmava o cientista brasileiro, era o fato de que a importação de tecnologia estrangeira estava ascendendo a um patamar muito acima do orçamento científico, com gastos de 800 milhões de dólares em 1973 e perto de 3 bilhões em 1974.

Esse problema se revelava ainda mais perverso quando examinado com maior detalhe. Assim, verifica-se que o grosso de nossos gastos com tecnologia externa, entre 1965 e 1970, não era sequer realizado por empresas nacionais carentes de ciência própria, como se poderia pensar. Nesse período, 73% das importações foram feitas por grandes empresas estrangeiras, fossem elas independentes, em menor proporção, ou filiais de multinacionais, principalmente.

Apenas 27% das importações corriam por conta de empresas brasileiras. Era possível até mesmo conhecer estas grandes firmas estrangeiras já que 40% dos gastos se originavam no setor de transportes, mais especificamente na indústria automotiva que concentrava 32% do total das importações. Nada mais natural, portanto, do que identificar como principais países exportadores da tecnologia que comprávamos da Alemanha, 33% do total, e dos EUA, 30%.

Eram, afinal, destes países as maiores empresas de veículos instaladas no Brasil, como a Ford, a General Motors e a Volkswagen. As empresas nacionais realmente eram carentes de tecnologia, mas não podiam dar-se ao luxo de comprar tecnologia externa, um dos mais caros e monopolizados produtos comerciais existentes. Já as multinacionais adquiriam tecnologia em suas matrizes, fazendo remessas ao exterior a título de “assistência técnica” – item que englobava 68% dos gastos totais do Brasil com importação tecnológica.

Ademais, além de insuficientes, as verbas para a ciência eram mal distribuídas de modo a privilegiar os objetivos econômicos, altamente dependentes aos grandes centros e suas corporações, implantados à risca pelo regime dos generais.

Uma análise criteriosa dos dois primeiros grandes Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCTs, editados a partir de 1973) quando o chamado Sistema Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologico já estava sob a batuta do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – que em 1971 substituiu o Conselho Nacional de Pesquisa – o centro da questão era de voltar todo o esforço nacional para a pesquisa no setor privado ou nas chamadas economias mistas e revelava que as áreas prioritárias de pesquisa coincidiam com os setores de ponta na economia internacional tais como a energia nuclear, computadores, indústrias aeroespacial e petroquímica. Certamente não era uma tentativa de concorrer, nesses setores, com um país como os EUA – onde a verba para a ciência em 74 era de 25 bilhões de dólares -, mas de persistir na ideia de ficar para sempre como um país absorvedor de conhecimentos alheios. Além disso, notavam-se clareiras importantes na distribuição de recursos no que concerne, por exemplo, às ciências humanas, aí compreendidas áreas nobres como a Antropologia, a Política, o Direito, a Educação, a História e a Economia.

Não se pode esquecer, ainda, o atrelamento da pesquisa ao problema do endividamento externo: programas como os de melhoramentos genéticos, avançaram substancialmente a partir da década de 1970, devido ao problema de se montarem gigantescas culturas homogêneas, compostas de uma só planta, como a soja e a cana-de-açúcar. A agronomia mostra que plantações desse tipo – imensas fontes de alimento – transformam-se em verdadeiros ímãs de pragas, a ponto de ameaçar torná-las inviáveis economicamente, se não se aprimorarem variedades geneticamente mais resistentes.

Ocorre que o Regime Militar tinha interesse na soja – produto muito bem pago no mercado internacional – como forma de obter divisas externas. Assim se explicavam os gordos recursos da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola), comprometida com estudos importantes para diversos produtos de exportação. Ela recebeu no orçamento de ciência e tecnologia de 1981 recursos maiores que o próprio CNPq, principal órgão governamental para o planejamento científico no Brasil. A Embrapa nesse ano recebeu 18% do orçamento para a ciência enquanto que o destinado ao CNPq ficou em 14%.

Em vista a todos esses fatos, os planos do Regime Militar acabaram, ironicamente, forçando cientistas a sair dos laboratórios e vir para as ruas debater política. E em nenhum lugar isso se revelou melhor do que nas famosas reuniões anuais da SBPC. Após o golpe de 1964, sob a presidência de seu fundador, o fisiologista Mauricio da Rocha e Silva, a entidade máxima da comunidade científica denunciou o fechamento político e recusou a negociar com o governo dos generais. Nesse período, até 1969, perdurou um clima de expectativa em que ainda se articulavam os novos planos para a ciência nacional. As reuniões da SBPC se tornariam cada vez mais importantes entre 1969 e 1973, a etapa mais dura da repressão política, quando os cientistas seriam presos, perseguidos, cassados e demitidos às dezenas.

Foi então que o regime impôs o seu esquema institucional de pesquisa, mas, também abriu seus flancos políticos: a partir de 1974, em plena distensão do presidente Geisel, os cientistas tiveram o seu período de maior agitação oposicionista, só arrefecendo seus ataques a ‘abertura’ do general Figueiredo, em 1978.

Os encontros mais concorridos da SBPC, de fato, começaram em 1974, em Recife, passando depois por Belo Horizonte, Brasília e São Paulo. Neste último, de 1977, não contou com verbas oficiais, um revide do governo às denuncias corajosas, levantadas nos debates e assembleias anteriores, contra a tortura e a distribuição desigual das riquezas, entre outros temas. Assim a reunião de 1977, marcada inicialmente para Fortaleza, foi transferida para São Paulo, onde contou com o apoio de diversos setores oposicionistas aos generais no poder. A arquidiocese paulistana, através da Pontifícia Universidade Católica (PUC), cedeu suas instalações para o encontro.

O recuo do regime desencadeou reações diferentes entre os cientistas e, em 1978, Rocha e Silva revelou-se contra uma tentativa de aproximação entre a SBPC e o governo. As diretrizes posteriores da SBPC mostraram que a comunidade científica tendia a despolitizar gradualmente a entidade, uma vez encerrado o ciclo mais terrorista dos governos do Regime Militar.

No entanto, as dificuldades políticas com o governo prosseguiriam, como se via por um documento da SBPC, de 1983, dirigido ao Ministério do Planejamento, pedindo reformas nos mecanismos de decisão e de fomento da política científica. Naqueles dias o jornal ‘O Estado de São Paulo’ comentou em editorial o documento, afirmando que ele representava uma manifestação de “cansaço, impaciência e desconfiança” por parte dos cientistas brasileiros. Afirmava, ainda, que estes últimos não se consideravam representados nos órgãos de decisão “atribuindo a condição de usurpadores” aos então ocupantes do comando das entidades oficiais ligados à ciência.

O fato é que o Regime Militar institucionalizou a ciência de modo autoritário, centralizando absurdamente seus órgãos principais. O comando geral da política cientifica atuava sob o Ministério do Planejamento que interligava ações do CNPq e outras entidades como a FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A política científica, além disso, foi organizada a partir de diretrizes estipuladas, em 1964, com participação do próprio Conselho de Segurança Nacional. Na verdade, desde a Segunda Grande Guerra (1939-1945), o planejamento da ciência era uma necessidade cada vez mais premente das grandes empresas internacionais. Para implantar-se nos países subdesenvolvidos, as multinacionais precisavam de técnicos locais que conhecessem e soubessem lidar com as novas tecnologias em surgimento: radares, foguetes, computadores, produtos químicos derivados de moléculas complexas, etc. Exatamente como estava nos planos do Regime Militar.

O CNPq era de 1951, criado por Getúlio Vargas com atribuições muito limitadas (desenvolver a energia nuclear). No mesmo ano foi criado um órgão-chave para a formação de pesquisadores, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Ambos passaram por diversas reformulações sob o Regime Militar, até cair sob o comando do Ministério do Planejamento, em 1974.

Assim, embora tenha sido útil para o regime, a política econômica teve um efeito limitado para a ciência brasileira, pouco mais que uma reedição de seus pequenos avanços em certos períodos do passado. Era interessante constatar que alguns desses períodos de avanço ocorreram quando nossos cientistas dedicar-se aos problemas relacionados com a realidade nacional. Os cientistas dos institutos biológicos, no alvorecer do século XX, voltados para os problemas das doenças tropicais foram capazes de fazer a caracterização patologias ainda desconhecidas, como a febre tifoide, em São Paulo. Desenvolveram-se, nesses institutos, grandes cientistas, como Vital Brasil, descobridor do soro antiofídico, também trabalhando em uma área pouco conhecida pelos europeus. Outro exemplo é o de Oswaldo Cruz, que desenvolveu métodos pioneiros de saúde pública. O mesmo pode se dizer de Carlos Chagas, o primeiro a descrever a terrível doença que leva seu nome. Ao mesmo tempo, Santos Dumont tornou-se o inventor de avião apenas porque teve acesso à tecnologia francesa, em 1906.

Os portugueses, em 1711, apreenderam um livro denunciando o descaso com que tratavam o desenvolvimento e ensino das técnicas empregadas no fabrico do açúcar, então principal atividade econômica do País. A publicação de “Cultura e Opulência no Brasil por suas Drogas e Minas”, de André Antonil foi duramente perseguida pelos colonizadores de então. Por atitudes como essa, acabaram tendo um papel menor que o dos holandeses nas primeiras manifestações cientificas no Brasil. É de um holandês, Guilherme Piso, o livro “História Natural do Brasil”, de 1648, onde apareceram as primeiras descrições sistemáticas da flora nordestina. Continha, também, um capítulo sobre medicina no Brasil que o tornou um dos livros sobre o assunto mais importantes do século 17.

Isso não significava, de forma alguma, que os cientistas brasileiros pretendessem fechar os olhos às áreas de vanguarda da ciência internacional. Ao contrário, denunciavam a ciência utilizada promovida pelo Regime Militar, alertando que, quando a pesquisa fundamental foi deixada de lado, houve um enfraquecimento geral da pesquisa do País.

Referências Bibliográficas:

Szmrecsány, Tamás and Lapa, José Roberto do Amaral. História Econômica da Independência e do Império, 2. ed. São Paulo: USP, 2002

Revista História Viva, nº 18, pgs. 82-85. Editora Duetto. Abril de 2005.

Intelectuais e a resistência democrática, por Milton Lahuerta. Cadernos AEL, n. 14-15. IFCH, Unicamp, 2001.

ALMEIDA, M. H. T. de. Tomando partido, formando opinião: cientistas sociais, imprensa e política. São Paulo: Sumaré, 1992, p.29.
Newton Freire-Maia. A ciência por dentro. Petrópolis: Vozes, 2007. 213 p.

http://www.cnpq.br/web/guest/anos-70

http://www.sbpcnet.org.br/site/memoria-sbpc/
http://www.finep.gov.br/scripts/sysbibli_cgi/sysportal.exe/index#0

História Natural do Brasil – edição brasileira: Guilherme Piso (trad. Prof. Alexandre Correia, seguido do texto original, da biografia do autor e de comentários). História Natural do Brasil Ilustrada. edição comemorativa do primeiro cinqüentenário do Museu Paulista ed. [S.l.]: Companhia Editora Nacional, 1948.

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