O Paraíso Deve Ser Aqui: É melhor na Palestina

“Com humor e drama, cineasta palestino Elia Suleiman tenta se situar no mundo atual e se depara com situações bizarras, surrealistas e violentas”

Mesmo diante do cotidiano aparentemente igual nas estruturas econômicas, sociais e tecnológicas de cada país neste Terceiro Milênio, o cineasta palestino Elia Suleiman encontra formas de diferenciá-las. Neste “O Paraíso Deve Ser Aqui” as particularidades não dependem dos costumes ou mesmo de uma tendência de cada povo. O espectador em dada sequência, ao longo dos noventa e sete minutos de narrativa, se depara com o que diferencia um povo do outro. Não é tão explícito que se possa ver através dele a identidade de todo um povo seja milenar ou não.

Suleiman se vale dos recursos do documentário, do drama e da comédia para criar situações que fogem da linguagem cinematográfica padrão. A começar pelo modo como cria tensão, suspense e faz rir através do confronto entre o padre e o sacristão através da porta da Igreja. E expõe em poucos segundos a violência à qual os palestinos são forçados a viver. Inexiste diálogo, mas só a imposição de Israel e dos EUA. Reflete a sucessão de vítimas palestinas em sua maioria de jovens, crianças e mulheres. Mas nestas sequências Suleiman termina por valer-se do humor.

Com sua câmera sempre parada o suficiente para mantê-la altura dos ombros dos personagens, ele é há um só tempo argumentista, roteirista, intérprete e diretor. Na primeira parte deste “O Paraíso Deve Ser Aqui”, ele é o morador da casa diante de seu pomar sempre “visitado” por seu vizinho. O que lhe interessa aqui é a relação entre duas pessoas sem qualquer imposição de uma à outra. É a chamada convivência entre os desiguais. Ele tolera o invasor e este não reage de forma a fazê-lo expulsar de sua propriedade, onde passa só algum tempo.

Contudo, seu olhar através da câmera se estende à rua onde a latente violência, matizada pelo tenso e perigoso cotidiano na Palestina, o obriga a conviver com seus compatriotas sempre armados de metralhadoras e dispostos a disparar à menor ameaça. Com estas caracterizações, Suleiman constrói o que simboliza ser palestino cercado e sujeito à invasão israelense a qualquer hora. Qualquer problema em seu cotidiano, igual à quebra de algum preceito religioso, ao servir algo proibido à sua filha, ele pode se insurgir. Ainda assim, levam a vida de cidadão comum.

Suleiman quer espectador identificado com palestinos

O que interessa a Suleiman é fazer o espectador se identificar com os palestinos, em “O Paraíso Deve Ser Aqui”. Inclusive interpreta a si mesmo como o cidadão comum, pacato, não dado a rompantes e à violência. Toda a narrativa é estruturada sem trama desde o início dos entrechos com os quais o espectador irá desenvolver sua própria história. Sua câmera não se move, as sequências são curtas e as situações estão sob controle. Procura captar o que ocorre ao seu redor com as pessoas comuns, o idoso vizinho e as jovens que usam a água do riacho e são simples palestinas.

Desde o início dos entrechos o espectador percebe estar diante de um “filme de estrada” diferente, com Suleiman a percorrer longas distâncias de automóvel ou de avião de onde se vê às árvores, o capim, os cactos e as montanhas tomadas pelo verde. Diferente dos lugares ermos, da paisagem agreste, das poeirentas estradas e das rústicas casas de madeira cheias de mistérios e aventuras de “Sem Destino (1969), da dupla Denis Hopper (17/05/1936-29/05/2010) e Peter Fonda (23/02/1940-16/08/2019). Neste em “O Paraíso Deve Ser Aqui” a busca é bem outra.

O sentido aqui é revelar o que identifica cada povo e nação neste conflituoso momento histórico engendrado pelo neoliberalismo em infindável crise. É como deixa antever Suleiman, a arte cinematográfica pode refletir através da força de suas imagens desde conteúdo, situações, conflitos até os interesses advindos da contundente realidade. Em sua construção dramática, o cineasta palestino se permite narrativa tão abrangente quanto dele é exigido. São abordagens de diferentes temas que podem levar a debates de igual complexidade não só por serem atuais.

Para Suleiman Paris é a cidade dos sonhos

Não é difícil localizar estas configurações em Paris onde Suleiman se depara com outro tipo de estrutura política, econômica e social. A mudança de costumes está exposta nas ruas, avenidas e praças. Sua câmera capta cada instante, cada estilo, cada rosto num contínuo fluir de sociedade bem estruturada. Aos seus olhos, até certo ponto, “Paris ainda é uma festa”, como diz o jornalista-escritor estadunidense Ernest Hemingway (21/07/1899-02/07/1961, em seu romance “Paris é uma festa”. Não há mais espaço, a exemplo do que flagra Suleiman, para o deleite amoroso.

Sua Paris é a megalópole onde todas as raças e classes se movimentam ao impulso da alta costura, do Museu do Louvre, das mesas nas calçadas dos bares, das comemorações da Queda da Bastilha e das visitas à Torre Eiffel. Este frenesi perde, no entanto, para o que ele matiza como o horror. Há todo momento policiais militares surgem nas estreitas ruas. E além deles, tanques de guerra, patrulhas policiais armadas e batidas policiais atestam o quanto Paris se tornou militarizada. Se poderia dizer de duas formas: a) O perigo de atentado redobrou; b) – A segurança garante o sorriso cotidiano das modelos e das cidadãs e cidadãos comuns.

Este olhar, não é demais repetir, confirma inexistir neste estágio da humanidade cercada de negócios por todos os lados a tão apregoada segurança. As superpotências dilapidaram tanto as riquezas do planeta e destruíram igualmente as potencialidades dos países subdesenvolvidos, que deles elas só herdaram o rancor e a vingança. O próprio Suleiman sentiu este impasse ao tomar o metrô e ser perseguido por um assaltante. A segurança se tornou relativa. A urgência de tornar as megalópoles vigiadas vinte e quatro horas como a cidade da obra-prima “1984”, de George Orwell (25/06/1903-21/01/1950), não as tornou seguras.

É mais seguro viver em Ramalá ou Jerusalém Oriental

Entende-se a irritação de Suleiman em Nova York, pois a recepção aos seus filmes nos EUA era melhor do que em Paris. Teve encontros satisfatórios com vários interessados. Pôde até circular pelo Central Parque. A questão acabou sendo outra. Qualquer suspeita de ser de país em desenvolvimento ou do Oriente Médio pode acabar numa sala da Emigração para ser extraditado. Se for palestino então todos os procedimentos serão apressados. Mesmo com todas as ameaças de serem invadidos por Israel, “estar em Ramalá ou Jerusalém Oriental, capitais da Palestina, é mais seguro do que em qualquer país europeu ou nos EUA”.

O Paraíso Deve Ser Aqui. (It Must Be Heaven). Documentário, drama, comédia. Produção: Alemanha, Canadá, França, Palestina, Qatar, Turquia. 2019. 97 minutos. Montagem: Verónique Lange, Fotografia: Sofia El Fani. Roteiro/direção: Elia Suleiman. Elenco: Gael Garcia Bernal, Tarik Kopty, Gregori Colin, Elia Suleiman. Escolhido para representar a Palestina na seleção para os indicados ao Oscar de Melhor filme Estrangeiro de 2010.

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