“O Passado” Lições de moral

Em filme sobre as trocas de parceiros e suas consequências na vida dos filhos, cineasta iraniano Asghar Farhadi mostra sua visão sobre as relações amorosas no Ocidente

Logo na abertura deste “O Passado”, a câmera do cineasta iraniano Asghar Farhadi se fixa em Marie-Anne (“Bérénice Bejo”) e Ahmad (Ali Mosaffa). A vidraça os separa. Esta duplicidade de espaço representa o que há entre eles. Durante toda a narrativa haverá algo a impedir que se aproximem. Farhadi usará este recurso em outras sequências. Na tentativa de reconciliação de Marie-Anne com a filha adolescente Lucie (Pauline Burlet) e na tensa conversa de Samir (Tahar Rahin) com sua empregada Naïma (Sabrina Quazani). Em todos, Farhadi se vale de elipses para ampliar o sentido.

Percebe-se, desde o início, que Farhadi está interessado em discutir a liberação feminina no Ocidente. Todo o enredo é centrado nas escolhas de parceiros da balconista de farmácia Marie-Anne. Mãe de duas filhas, a pequena Léa (Jeanne Jestin) e a adolescente Lucie, ela vem de dois relacionamentos mal sucedidos. Seu atual companheiro, o imigrante iraniano Samir (Tahar Rahim) e o filho dele, o garoto Fouad (Elyes Aguis) dividem a casa com elas. Farhadi sintetiza este difícil recomeço na reforma da casa e na ocupação dos cômodos pelo menino e as meninas.

A questão feminina tem sido central na obra de Farhadi. Ele procura passar uma visão crítica do tratamento dado às mulheres em seu país. Embora possam trabalhar, estudar e dirigir veículos, são apedrejadas se forem condenadas por adultério. Seu filme anterior, o premiado “A Separação” (2011), mostra a luta de uma iraniana para convencer seu parceiro a deixá-la levar a filha aos EUA, onde fará um curso. Sem o consentimento dele, terá de ir sozinha, mesmo a garota estando disposta a viajar. Já Marie-Anne não se submete a tutelas, sendo livre para fazer suas escolhas, arcando com as consequências.

Farhadi revela conservadorismo

Na visão de Farhadi, estas escolhas impõem conflitos e consequências para os filhos. Eles podem se rebelar contra os pais, como Lucie que chega muito tarde ou dorme fora de casa. Só a chegada do ex-padastro, Ahmed, a faz se reaproximar. Ele mesmo estranha o ambiente em que viveu. Nada ali está no lugar. De seus livros aos pertences deixados para trás. E, além disso, a casa está em reformas, um verdadeiro caos. Com estes recursos visuais, Farhadi revela o desarranjo na vida de Marie-Anne, dando ideia da completa desagregação familiar em que vivem Léa, Lucie e o garoto Fouad.

No entanto, o conservadorismo de Farhadi se evidencia no modo como estrutura a narrativa, pondo Ahmed como o personagem que porá ordem no caos. Ele é jeitoso, maleável, bom no trato com as crianças. Aos poucos, ele vai atenuando os conflitos ao consertar a correia da bicicleta e o encanamento da pia e dividir a cama com Fouad, até então resistente a ele. Ele chega a se interpor entre Marie-Anne e Samir, quando é obrigado a conviver com eles em sua antiga residência, sem fugir ao confronto.

Lucie é o personagem-chave do filme. É através dela que Farhadi revela as consequências das escolhas de Marie-Anne. Arredia, sofrida, ela se recusa a conviver com Samir no mesmo teto. E acusa a mãe por tê-lo escolhido. Só Ahmadi, em que confia, poderá desvendar o que motiva seu ódio. O que ele encontra é digno dos filmes-noir das décadas de 40 e 50 (“Pacto de Sangue”, de Billy Wilder, 1944).

Trama muda para adultério

A partir daí, Farhadi usa uma série de recursos narrativos. Inclusive vestido de seda manchado e e-mails, que funcionam como macguffins (Objetos usados para reforçar o suspense. Vide o copo com leite, em “Suspeita”, de Alfred Hitchcook,1941). Marie-Anne, Lucie, Ahmad e Samir se envolvem em mistério, ciúme, culpa e traição. E Céline, a personagem imobilizada, se transforma no centro da trama. O tema principal se perde numa abordagem sobre ética, moral, adultério e traição. Marie-Anne e Samir tentam se justificar, e até o garoto Fouad, na sequência do metrô, mostra-se atingido.

Então a última parte do filme se descola das outra duas. Naïma, personagem secundário, sem consistência dramática, surge na trama para desviar as suspeitas que recaem em Lucie. Assim, Fahradi cai no velhíssimo clichê de o mordomo e a vítima serem os culpados. Faltou-lhe, como roteirista, insistir na motivação de Lucie para vingar-se da mãe. Seria uma aceitável justificativa freudiana, enriquecendo a personagem e o próprio filme, tornando-o mais complexo e realista.

Ainda assim, Farhadi encaminha Marie-Anne à redenção. Imagens da casa pintada, móveis e objetos no lugar, Léa e Fouad brincando no quintal, Ahmed guardando para si seus motivos, Lucie ao seu lado. Elas na cama, lado a lado, se acariciando, diz muito sobre a condição feminina e a relação mãe-filha sem impor tendências ou preferências. Liberação feminina não significa renúncia ao equilíbrio familiar, nem à liberdade de escolha de parceiros. Farhadi quase chegou lá.

“O Passado” (“Le Passé”). França/Itália. Drama. 2013. 131 minutos. Montagem: Juliette Welfling. Fotografia: Mahmoud Kalari. Roteiro/direção: Asghar Farhadi. Elenco: Bérénice Bejo, Ali Mosaffa, Tahar Rahim, Pauline Burlet, Elyes Aguis.

(*) Festival de Cannes 2013. Prêmio Melhor Atriz: Bérénice Bejo.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor