O Som ao Redor: Heranças feudais
Filme do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho radiografa a metamorfose dos senhores de engenho e a gênese das milícias urbanas
Publicado 13/02/2013 12:17
O mais importante neste filme de estréia do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, “O Som ao Redor”, não é o encadeado dos entrechos principais, mas o que surge nas cenas de contextualizações narrativas. Elas mostram o aglomerado de barracos entre condomínios de alto luxo, o garoto afrodescendente esgueirando-se pelos muros eletrificados e as/os empregadas/os e seguranças entrando pela porta da cozinha. Todos são, supostamente, reflexos do desenvolvimento sócio-econômico do país, quando, na verdade, retratam a permanência de suas estruturas feudais.
Estas entrelinhas são reforçadas pelos sons inclementes que demarcam espaços, climas e situações. Do bate estacas da construção civil, buzinadas e freadas, gritos na rua, música em altos decibéis, explosões e tiroteios. E ditam, inclusive, o ritmo do filme dividido em quatro capítulos, sem criar falsas pistas. Mendonça Filho optou por decantar a cena, caracterizando a ação, sem cair na morosidade. Os três eixos do filme se encaixam naturalmente, sem perda de clareza na transição um para o outro. As entrelinhas assim ganham realce.
São elas que mostram as diferenças de perspectivas entre as classes sociais em cena. A burguesia e a classe média em seus condomínios de luxo têm a perspectiva de manutenção do status quo. Atesta-o a reunião de condomínio em que os participantes se esforçam para manter o valor de seu patrimônio e não deixá-lo esvair em “desleixos”, como o do porteiro que se embriaga no serviço. E pela maneira como o sinhozinho Dinho (Yuri Holanda) e o patriarca, seu avô Francisco (W.J.Soha), se apresentam aos seguranças que “afrontam” seu poder secular de classe.
Influências negativas da burguesia
Não só eles preservam este tipo de imposição. Os setores médios adquirem, pelas colonizadas influências da alta classe média, da burguesia e da mídia do capital, perniciosos hábitos consumistas e a arrogância com os que lhes parecem “inferiores”. É significativa a sequência da entrega da geladeira a Bia (Maeve Jinkings). Ela grita com o entregador da TV HD: “É na vertical! Na Vertical!”, quando bastava ela mesma colocá-la em pé, pois não é tão pesada assim. É dela o costume de poluir o sobrado onde mora com a fumaça de seu baseado e inventar formas de liquidar o cão Fila da vizinha.
No entanto, há, como sempre, um dado positivo. Bia entendeu a necessidade de educar os filhos e estimulá-los a aprender chinês. Uma percepção de que a unipolaridade enfeixada pelos EUA se transformou em multipolaridade, sob a liderança da China neste século XXI. Nem tudo, como se vê, é só absorção dos ditames da classe dirigente; os setores médios podem se reposicionar sem ela. Falta-lhe, no entanto, o censo de classe para si e não para imitar seus decadentes senhores feudais.
Estes senhores passaram por uma radical transformação, pois seu capital antes investido na produção agrícola se tornou menos lucrativo do que especular no mercado imobiliário ou no setor financeiro. Francisco, ex-senhor de engenho, preferiu criar uma vila de espigões de alto luxo, em Recife. Suas idas ao antigo engenho de açúcar são agora esporádicas. Nele ainda restam as ruínas de seu auge, como as do velho cinema, onde o neto João (Gustavo Jahn) e a namorada Sofia (Irma Brown) têm seu instante de “Cinema Paradiso”, e ela desconfia de suas nefastas reminiscências.
Velhas exclusões permanecem
Mendonça Filho intercala esta sequência com metáforas, de sangue jorrando, gemidos, gritos, como se pontuassem sofrimentos, execuções, crueldades históricas, perpetuadas desde a época da escravidão. Uma bela capacidade de síntese do cineasta pernambucano. Francisco, cujo sorriso é seguido de triste olhar, mantém o hábito de tratar seus empregados como escravos. Recebe-os pela porta da cozinha, com superioridade e indiferença. Se não está satisfeito, parte para a ameaça pura e simples.
Não é outro o comportamento da burguesia e da alta classe média na realidade. Basta ver os elevadores de serviço, as cercas elétricas, as câmeras de vigilância, que só lhes permitem atender a “quem não os ameaça”. Daí abrir espaço para o mercado da segurança privada, outro eixo tratado por Mendonça Filho. Quanto maior o temor da classe média, da alta classe média e da burguesia maior o seu lucro. As maiores ameaças, no entanto, não vêm dos aglomerados. O plano sequência da explosão no encontro de Francisco com irmãos seguranças Clodoaldo (Irandhir Santos) e seu irmão bem o demonstra.
Tanto que as boas intenções de João, o “senhorzinho democrático”, são só aparências. Ao comentário da candidata a inquilina, que questiona a má fama do apartamento, ele responde: “Não vejo como interfere.” Deste modo, Mendonça Filho traça o perfil de uma sociedade em veloz mutação, mostrando como as velhas mazelas da classe dirigente se transformam sem soterrar o sistema escravista. Apenas o transfere do meio rural para o urbano. Um grande filme para se pensar o Brasil que emerge em meio à derrocada neoliberal.
“O Som Ao Redor”.
Drama. Brasil.
2012. 131 minutos.
Fotografia: Pedro Sotero/Fabrício Tadeu.
Música: DJ Dolores.
Desenho de som: Kleber Mendonça Filho/Pablo Lamar.
Roteiro/Direção/Montagem (com João Maria): Kleber Mendonça Filho.
Elenco: Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Gustavo Jahn, W.J.Soha, Irma Brow, Yuri Holanda.