Palmares é uma poça de lama*

As águas descem. Ficou uma poça de lama grossa, porosa, doentia. Não se ouve o ruído ameaçador das águas subindo, cobrindo casas, pondo abaixo pontes. As pontes caíram há uma semana; o estrondo que se espalhou deu conta de que o mundo, ali, ruiu; de que toda a gente de Palmares nada significara para o resto da humanidade. A ponte caiu! – alguém gritou para afirmar o impossível, visto que as vigas de concreto, ah… as vigas; nem mesmo um milagre de Deus as tiraria dali. Agora, com a trégua das enchentes, inda que o bodum revolvido dos esgotos se misture à crestadura do sol súbito, a vida se reanuncia; tímida, promissora.

Na beira do Rio Una, a casa da professora fora invadida por destroços; uma casa de feitio senhorial, com cinco quartos, terraços na frente, nos dois lados, nos fundos. Os fundos e a cozinha foram levados pela torrente insana. Os móveis, utensílios módicos testemunhando o esforço de, com o salário de professora municipal, ostentar os costumes da classe média. Vista do outro lado da rua, distingue-se uma quantidade nunca contada de eucaliptos em volta. Eucalipto é árvore predadora, apontar sua existência seria estimar a quantidade de outras espécies sufocadas por ele. A casa não fora comprada. O pai da professora, há muito no ofício de chefe de manutenção da usina, ganhara-a do usineiro. Concessão obtida depois de trinta anos de serviço. Nenhum dispêndio sequer para a obtenção do título de proprietário, a não ser o do dia a dia, da mantença do imóvel. Agora… Também a usina tivera o maquinário invadido pelas águas. Prejuízo de 14 milhões! O usineiro, quase apoplético, viu a lama se misturar com o óleo lubrificante nas esteiras. Recuperação só com a ajuda do governo! O pai da professora, 75 anos, nutrira esperança de que sua casa, residência dos anos em que servira à usina, zelando pelo uso da moenda, teria o reforço dos cofres do usineiro.

Os dois, acompanhados do neto de 22 anos, seguem para o alto de Palmares. Ali se veria a cidade semicoberta. No caminho, onde havia um parque de diversões, há ferragens torcidas. Eles andam sobre uma das margens da rua. Usando botas de borracha, só com a roupa do corpo, não se importam de pisar na lama mole, de um pretume nunca visto, ameaçador, inda que atraente como o azeviche. Juntam-se à romaria dos retirantes. Carroças puxadas por cavalos magros levando famílias e móveis velhos, panelas de alumínio, foices, enxadas, pás, tudo útil para o trabalho de remoção da lama. O caminhão-pipa, com a torneira aberta na parte de trás, enchendo latas, panelas de gente com os pés, as pernas, os braços, a roupa do corpo suado sujos. Ninguém lhes censura a aparência porque a penúria os igualara. Os três não têm vasilhas para encher com a água transparente da torneira grossa, água limpa saindo de uma espessa mangueira de borracha. Entram na fila, um atrás do outro. Bebem a água com as mãos em concha, sôfregas, as lágrimas ocultas pela abundância da água. Bebem olhando para a lama, com vingança nos instintos.

Na esquina do quarteirão, uma mocinha e seu irmão, os dois aparentando 13, 14 anos, tomam conta do que restara do choque desigual entre eles e a torrente. O precioso butim distingue-se do amontoado de lixo na superfície da lama, por ainda ostentar o reduzido brilho de meia dúzia de panelas amassadas, com manchas de azinhavre. Tudo em cima de uma estante que nunca vira livros, mas um rádio portátil sumido na correnteza, e algumas plantas em jarros de barro, de estimação. Pai-avô, filha e neto apreciam rendidos à pobreza dos irmãos; flagrados pelos próprios sentidos, redime-os de alguma culpa a escassez de bens ou o fim do que possuíam.

Param atrás de um carro de cujo bagageiro, um homem de cabelos grisalhos distribui pães tirados de um saco. Com a fome estampada nos olhos, a fila dos flagelados põe-se tão disciplinada quanto o costume de comer a minguada refeição diária, velando por si e pela porção de cada um dos parentes. Pai-avô, filha e neto seguram cada um um pão, sobem a ladeira; acomodam-se na casa de outra professora que já os esperava. Há biscoitos na mesa da cozinha, numa cesta de vime descoberta. Os três têm apuro no olfato, mas…

– Não tenho fome – diz o velho, distinguindo dali a sombra do telhado de sua casa.

*Estive em Palmares após a queda das duas pontes. Vi um povo em polvorosa, gente se esbarrando nas ruas.O cenário é de retirada, de fuga, como numa guerra. Alguns comerciantes, sem escrúpulos, vendem um bujão de gás por 60 reais. A polícia, quando os flagra, prende-os. Não há água nas torneiras e falta energia elétrica. Helicópteros sobrevoam a cidade. O prefeito se viu obrigado a usar bermuda, calçar um par de botas e se juntas às turmas de remoção da lama.

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