“Paranoid Park”: Juventude em estado de choque

Em filme sobre adolescente americano, o diretor Gus Van Sant reflete sobre a reação dos jovens a acontecimentos que fogem ao seu controle, como metáfora da classe média de seu país na invasão do Iraque.

Em certo momento de “Paranoid Park”, filme do americano Gus van Sant (“Elefante”, “Fim dos Dias”), a desorientação do adolescente Alex (Gabe Nevins) coloca-o em queda livre. E o faz oscilar entre o estado de choque e a tentativa de escapar a seus efeitos, pois não sabe lidar com a situação que o pegou de surpresa. Fica num estado de torpor, com a câmera fixa em seu rosto, sem que possa se desviar. Mesmo quando diante do detetive Richard Lou (Daniel Liu), que o reúne junto com outros skatistas numa sala da escola onde estuda para ouvi-los sobre a morte de um fiscal de trem – uma espécie de catatonia o domina e ele fica a olhar para o policial desnorteado. Este estado se impõe devagar, dele tomando conta até se tornar parte de seu corpo.



Ninguém sabe direito o que lhe aconteceu, nem ele se atreve a revelá-lo. Trata-se de um segredo dividido com um “colega mais velho”, encontrado no parque, o Paranoid Park, freqüentado por skatistas que praticam manobras arriscadas. Saem pelos trilhos em busca de emoções fortes e as encontram num “passeio” de trem cargueiro. Pegam carona, mesmo sabendo do risco que isto representa.  E quando a “viagem” se transforma num pesadelo, o “colega” o abandona e ele mergulha numa zona cinzenta de difícil saída. Resta-lhe então exorcizar o trágico incidente, registrando-o em folhas esparsas de papel.


 


Filme liga desorientação da juventude à guerra no Iraque



Enquanto hesita em transferir para o papel o que ainda não admitiu para si, suas dúvidas são simbolizadas pelas nuvens cinzentas às suas costas.  O enquadramento feito por Van Sant coloca-o entre folhagens à beira da praia, tendo elas a emoldurá-lo. O clima tépido domina o ambiente e ele logo abandona os escritos, regressando pela trilha por entre as folhagens à cidadezinha ao longe. Noutra seqüência, ele se debate, tentando esquecer o que aconteceu durante a curta “viagem” de trem. Há muita luz a banhar os fundos de sua casa e o campo que se estende a perder de vista. Esta o cega, evitando que veja para além dela. A luz aqui não traz à tona os fatos, pelo contrário, representa o embotamento de sua mente. É como se ela, de repente, representasse o vazio.



Com estas seqüências “Paranoid Park” se torna um filme de emoções contidas, com o personagem (Alex) andando em meio à paisagem, corredores da escola e à rua de sua cidade, sem se relacionar com o ambiente em que vive. Ao ser abordado pelas adolescentes Jennifer (Taylor Monsen) e Macy (Lauren McKinney) reage com indiferença. Esta é, no entanto, aparente. Alex demonstra numa conversa com Macy, sua visão de mundo. Critica a alienação de sua geração e a guerra no Iraque, dando, desta forma, a conceituação do filme. Trata-se, na verdade, do que ocorre hoje nos Estados Unidos, nas camadas médias, em relação à invasão do Iraque pelos Estados Unidos. Elas não sabem como tratar esta questão. Recebem informações sobre a guerra que se passa no Oriente Médio e vivem em constante perplexidade. Como Alex. Algo de muito grave ocorreu e não têm noção exata das razões que levaram seus filhos até lá.



Van Sant cria dilema para a classe média americana



Van Sant, com esta visão, cria um dilema de consciência para a classe média americana, que no início foi bombardeada de falsas informações pela mídia de seu país, conivente com o Governo Bush e que só agora se deu conta do atoleiro em que foi metida. Igual situação vive Alex. Não bastasse o impacto do que lhe aconteceu, enfrenta o divórcio de seus pais. Tenta se adaptar, dizendo a Macy que isto é normal, todas as famílias americanas estão sujeitas ao divórcio. Mas, no fundo, busca compensar sua decepção. Convive com a mãe (Grace Carter), assim como o faz com o pai (Jay Williamson) e ouve as dissertações do irmão sobre histórias televisivas.



Van Sant, porém, não está interessado no conflito familiar, não se perde em muitas seqüências sobre o assunto. Gasta apenas duas cenas com ele, o suficiente para tipificar a natureza das relações familiares de Alex. O que lhe importa mesmo é o universo adolescente, a “tribo” skatista da qual ele, Alex, faz parte. Cada um, à sua maneira, tenta integrar-se, embora permaneça distante, dada à necessidade de se afirmar com manobras arriscadas e atrair para si a atenção das garotas que vivem ao seu redor. Há todo um gestual, indumentária, modos de falar e entender esse mundo particular, pós-industrial, dominado pela tecnologia. Não é um mundo brotado das relações pessoais, sim da relação do corpo com a roda, o pedaço de fibra que permite o equilíbrio que não é o mesmo da vida.



Skatista tem a sensação de se impor à gravidade



Essa relação permitida pela tecnologia retira das relações pessoais o mínimo de compreensão e das manobras o máximo de emoção. É preciso viver cada vez mais perigosamente. O espaço a ocupar é a pista de concreto, cheia de curvas, inclinações, que permite ter a sensação de voar e “ser capaz de se impor à gravidade”. O skate é pouco para o que pretende essa juventude. No caso de Alex e do “colega”, pegar carona no trem em alta velocidade é uma forma de variar as emoções, mantendo-se em perigo constante. Mas um lapso e bummmm!!! Lá se vai parte da vida ou toda ela. Depois vêm as conseqüências. E Alex não sabe lidar com elas. Fica desorientado.



O sentido de desorientação que Van Sant passa ao público em “Paranoid Park” advém da montagem, da posição de sua câmera, que não larga Alex. Flagra-o a todo instante. Mas o que vemos num momento é uma antecipação do que virá a seguir, para confirmar o que de fato ocorreu. Ou o prenúncio do desfecho. Poder-se-ia falar em culpa ou em busca de redenção. Alex, entretanto, não tem esse sentimento. Precisa antes de tudo absorver o que lhe aconteceu, no exato momento em que algo dele se desprendeu. Não que tivesse esquecido, só não encontra coragem para adentrar ao espaço selado pela mente. Numa conversa com Macy, ela sem saber lhe diz que se ele tem algo escondido que lhe diga. Será uma forma de esquecer.



“Paranoid Park” não é sobre um crime, mas a respeito de um incidente



Sua luta, porém, não é para esquecer, mas para compreender, sentir o instante em que sua vida se dividiu num antes e depois do incidente. Num momento, a câmera o pega em casa, trocando de roupa, noutro ouve as zombarias do amigo Jared (Jake Miller) sobre seu novo skate. O espectador também não sabe a razão desse novo brinquedo. Pode ser, na sua visão, uma troca banal. Menos o abrir-se de Alex, derramar seus segredos para o amigo, que não acontece. Ao contrário do padre em “A Tortura do Silêncio”, em que Hitchcock o faz guardar um segredo e isto o aprisiona, não tem o que esconder, só precisa montar cada peça do quebra-cabeça e desvendar-se. Seu olhar, quando está diante do detetive Lou, o mostra cheio de culpa, quase se denunciando. Dá-se conta, enfim, do que aconteceu.


 


“Paranoid Park” não é sobre um crime, algo que se faz deliberadamente; mas a respeito de um fato que passa a dominar uma vida, sem que ela possa se abrir para os outros. Alguém perguntou na saída do cinema se ele era culpado ao que o outro respondeu, não, ele não teve culpa. Equivale, no fundo, a isentar Alex ou, numa metáfora, a classe média americana pela paranóia que grassou no pós-11 de setembro. Ela queria se livrar dos supostos terroristas e apoiou a invasão do Iraque. Quando a ocupação se revelou uma catástrofe, com muitos de seus filhos ficando estendidos no campo de batalha, foi tomada pela desorientação. Igual ao que ocorre com Alex. Ele, no entanto, tem tempo para se recuperar do choque e construir novas trilhas, diferentes das ações perpetradas em busca de fortes emoções.


 


Tudo pela emoção que dura alguns segundos



É justamente isto o que dá o perfil dessa geração, brotada do ventre neoliberal: tudo pela emoção que dura alguns segundos. Depois vem a depressão, a falta de rumo. Nos diálogos de Alex com sua turma, o futuro não surge, salvo quando conversa com Macy, que, na ânsia de conquistá-lo, passa a discutir com ele a realidade política. Diferente de Jennifer que o transforma num troféu, uma conquista a mais, na tentativa do prazer rápido. Macy sabe manipulá-lo em seu proveito, de forma inteligente. É sensata, transmite equilíbrio e alguma perspectiva. E procura mudar à medida que há possibilidade de ter Alex a seu lado. O faz indo em busca de informações sobre o Iraque. Comportamento adverso do restante da “tribo”. Esta segue, sem disso ter consciência, a estrutura neoliberal-globalizante: o máximo de consumo e o mínimo de mudança. E Van Sant o demonstra, sem, contudo, cair no pessimismo.



Há uma parte nublada nas relações sociais dessas “tribos” que pode, uma vez desvendado o mistério que as encobre e as vitima; abrir perspectivas de transformações. A pratica do skate, longe de ser uma forma de se distanciar da realidade, acaba por se transformar num mundo fechado, como se vê na reunião dos skatistas com o detetive Lou. Ele quer ouvi-los para, a partir daí, compreendê-los. Fica diante de jovens cuja linguagem e comportamento difere muito de seus costumeiros suspeitos. Todos, com exceção de Jared, estiveram em Paranoid Park, local que pela expressão, “parque paranóico”, é freqüentado por uma espécie de outsiders do universo skatista. Sem constrangimento algum, eles falam; o que nada esclarece sobre o incidente.


 


Van Sant não demoniza o tatuado pai de Alex



Este nada revelar torna “Paranoid Park” diferente. Mescla suspense, intriga policial, comportamento juvenil, crítica sócio-política, sem discurso, revelações bombásticas.  É como se a câmera ao permanecer à altura da face dos personagens, escarafunchando suas reações, flagrasse o que elas ocultam. Uma sutil mudança é suficiente para revelar as mais profundas hesitações. Às vezes, elas se abrem em planos-seqüência que incluem o ambiente onde a ação ocorre e contribui para reforçar a desorientação. São as cortinas esverdeadas, com tonalidades fortes, móveis esparsos, a ocupar o reduzido espaço da casa de Alex. As escadas estreitas por onde surge sua mãe. Esse sentido de desorientação só é rompido na conversa dele com o pai.



Aqui Van Sant escapa ao clichê. O público fica diante de um homem numa oficina, com voz pausada, calma. Até ai nada demais, há um diálogo entre pai e filho. E nada ocorre como Alex planejara. Devia haver uma revelação, uma busca de solução para um problema por ele enfrentado, e o pai seria a única pessoa com a qual poderia se abrir. Van Sant, no entanto, não fecha a expectativa, a janela aberta para o público permanece escancarada. Foi uma falsa pista. Ao invés da revelação sobre o incidente, ele chama sua atenção para as tatuagens no braço do pai. Pelos estereótipos, ele poderia ser um ente assustador, criador, na verdade, da personalidade desorientada do filho. Mas não, ele se mostra preocupado com os danos que seu divórcio em curso provocará nos filhos, e tenta minorá-los, mostrando-se compreensivo.



Van Sant deixa em aberto o desvendar  do incidente
              


Instantes como estes dão outra dimensão a “Paranoid Park”. Não importa muito o desvendar do incidente, sim o apresentar dos fios soltos de uma sociedade em completa desorientação. Uniões conjugais se rompem, porém não devem ser encaradas como fim das relações entre pais e filhos. Todos podem sobreviver. Não é fim do mundo. Essas parecem ser uma das preocupações de Van Sant, ao não buscar nas relações familiares os motivos do comportamento de Alex. Há algo maior em ocorrência e seus motivos estão em outro lugar. E isto precisa ser desvendado. Van Sant não o diz, prefere deixar em aberto, para que o público possa refletir sobre a desorientação que afinal não é da juventude apenas, mas de toda uma sociedade que apoiou iniciativas que, no fundo, não poderia endossar. No meio pode haver um incidente que pode levá-la a uma situação da qual não saberá como sair.


 


“Paranoid Park”. França/EUA. 2007. Drama. 90 minutos. Roteiro: Gus Van Sant, baseado no livro de Blake Nelson. Direção. Gus Van Sant. Elenco: Gabe Nevins, Daniel Lu, Taylor Monsen, Jake Miller, Lauren McKinney.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor