Picanha para o povo!

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Ilustração: Cris Vector/ Reprodução Twitter/ @crisvector

Era uma manhã chuvosa de sábado, no Bixiga. Fazia frio em pleno verão. O Poeta resolveu esticar um pouco a permanência em sua cama. Seu corpo pedia uma licença poética e ele não teve como recusar. Noblesse oblige. Pelas 14h, depois de lavar o rosto no tanque e escovar os dentes com sabão de coco, o Trovador do Timão vestiu a camisa da Gaviões da Fiel e se dirigiu ao supermercado. Com as notícias dos últimos dias, teve vontade de finalmente comer um churrasco feito na pequena grelha a carvão mantida na área de serviço de sua maloca. “Arra! O povo pede picanha”, bradou ele, à maneira de Macunaíma! Dirigiu-se então ao supermercado e ficou estarrecido com os preços, que aumentaram mais de 50% nos últimos meses.

Foi quando nosso Poeta, ainda sonolento, se deparou com Dona Benedita, sua vizinha, que estava tanto estupefata quanto boquiaberta.

“Poeta, o que está ocorrendo?! Não dá mais para comer carne e também o arroz. Estou desesperada”!

“De fato, Dona Benedita, uma bandejinha de bife de coxão duro está a R$ 15,00! Sairia mais barato tomar o bom vinho de São Roque, do qual sou orgulhoso embaixador. Sobrou o ovo para o povo”!

“E os milicos, Poeta”?

“O que se passa com eles”?

“Poeta, desça do mundo da lua, onde você passa a maior parte do tempo e olhe um pouco ao seu redor! Pasme só você que os milicos compraram 700 mil quilos, setecentas toneladas, de picanha, um corte nobre, e mais 150 mil quilos, cento e cinquenta toneladas de lombo de bacalhau, um produto caríssimo, e ainda 2 mil quilos de camarão, um prato elitista, para os fortunados oficiais das nossas forças armadas”.

“É sabido que cada quilo de proteína animal fornece ao menos dez porções, Dona Benedita, ou seja, alimenta dez pessoas”.

“Certo, Poeta. Isso quer dizer que a picanha, o bacalhau e os camarões comprados são suficientes para alimentar aproximadamente 10 milhões de pessoas”!

“Raios! A população atual de Portugal! Alimentada a picanha, bacalhau e camarões, às expensas do povo brasileiro, que passa fome! E nossas forças armadas têm apenas 20 mil oficiais, que são os beneficiários desta prática, têm altos salários e direito ao rancho dos quartéis e banquetes palacianos onde 4 mil deles estão a servir o desgoverno fascista. Ademais, Reco não come picanha! Para eles têm o arroz, o feijão, a farinha de mandioca, a água de torneira e o chiclete”.

“Viu só que escândalo, Poeta! E ainda têm o uísque Black Label, o Ballentine’s de 12 anos, o vinho, o conhaque e as 80 mil cervejas compradas a peso de ouro. Será que vamos encontrar a famosa rachadinha aí também? Faz parte”?

“Nem sempre as nossas forças armadas foram sanguessugas do povo brasileiro, Dona Benedita. Houve uma época, há muito tempo, em que seus líderes professavam valores humanísticos e populares. Não oneravam os cofres públicos e não torturavam a gente comum. Eu mesmo me lembro bem de minha infância, no Grupo Escolar, quando nós os alunos tínhamos nossa versão de letra para o dobrado Batista de Melo”!

“E qual era, Poeta”?

“ Era assim, Dona Benedita:

‘O arroz, comemos com feijão,
a pinga bebemos com limão,
mas se um dia a pátria amada
precisar da molecada,
puta merda que cagada’”!

“Hahaha, Poeta, você era impossível desde criança! Bons tempos quando o povo podia ir à boa escola pública, comer, fazer churrasco e ainda cantar. Hoje o Homem manda o povo tomar banho de esgoto, passar fome, chorar e morrer de bico fechado”!

“Hoje, Dona Benedita, nossas forças armadas não têm serventia para o Brasil, mas apenas para atender os interesses corporativos de seus escalões superiores; para sustentar um regime espúrio; para intimidar o povo brasileiro e reprimi-lo, se necessário. Nosso desgoverno serve apenas aos mercados financeiros e às classes rentistas”.

“Mas Poeta, é uma desumanidade. Estamos no meio de uma grave pandemia e da maior crise econômica de nossa história. O desemprego subiu a patamares jamais verificados. A Nação passa fome. Não há um auxílio financeiro mínimo que possa atender as necessidades básicas de nossa população. E os milicos estão comendo toneladas de picanha e bacalhau regadas a Black Label, vinho, cerveja e conhaque”?

“Pois é, Dona Benedita, o desgoverno do Melífluo é sustentado pelos militares, que participaram do golpe contra a democracia, e é declaradamente contrário aos interesses populares. Segundo o Posto Ipiranga, a morte do trabalhador é um controle populacional atemporal retardado, mas eficiente, e leva à melhoria das contas públicas. Seu chefe, o Capetão de Coturno, defende a mortandade horizontalizada do povo, quer seja pela pandemia, por fome, por desassistência, por balas certeiras ou perdidas, ou ainda qualquer outro motivo, todos eles válidos”.

“Poeta, olhe lá a Dona Risoleta, com aparência desalentada. Que tal propormos partilhar com ela uma bandeja de 400 gramas de coxão duro, que está a R$ 15,00. Ficará R$ 5,00 para cada um de nós”.

“É muito dinheiro para pouca comida, Dona Benedita, mas temos que comer carne ao menos uma vez por semana, não é”?

“Uma vez por semana? Que tristeza! Dona Risoleta…”

Enquanto isso, em Brasília, entreouvia-se em palácio, entre os extasiados Capetão de Coturno e o seu fiel capacho, o General Cassandro, encantados com os desditosos descaminhos do Brasil, em ânimo carnavalesco, a abertura do seguinte Repente, em tempo molto allegro:

“Eu sou o Capetão Capiau,
Só eu mando no meu quintal.
Minha cara é de mau e não como o carapau.
Somente para os meus, tem o vinho,
o camarão e o lombo de bacalhau.
Para o povo, tem no lombo a perna de pau.
Babau”.

Veio logo a resposta:

“Eu tenho General Cassandro por alcunha,
minha cara é de anjo, mas não toco o banjo.
Comigo não tem caninha, asinha nem farinha.
Para os meus, somente a picanha,
o uísque, o conhaque e também a cervejinha.
Para o povo, tem a abobrinha
e, pra quem não gosta, a bronha”.

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