“Polissia”: Sociedade doente

O que torna este “Polissia” (polícia), da francesa Maïwenn, impactante é a narrativa que mescla situações reais e encenadas do cotidiano do BPM (Batalhão de Proteção de Menores) de Paris. Ela e sua coroteirista Emmanuele Bercot estruturam, para isto, dois núcleos de ação: o externo configurado no abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, e o interno formado pelas/os policiais.

Uma escolha original, pois este último, longe de se distanciar das situações cotidianas, é um microcosmo daquele. Eles intercalam situações de um e outro, formando um todo que se reforça mutuamente.

Há nos dois núcleos de ação dezenas de personagens. Surgem em entrechos que logo se encerram dada às características da intervenção policial (denúncia, prisão, depoimento, solução do caso). E não se trata de “filme mosaico”, com diversos centros, a divisão em núcleos é apenas uma técnica narrativa. Serve para fugir ao emaranhado de situações e personagens, que tornariam o filme confuso e enfadonho, A dupla Maïwenn/Bercot cria então subtramas, pondo os/as policiais em diversas situações familiares e íntimas. E retira deles a áurea de super-heróis, de seres acima do cidadão comum.

Eles, embora devam ter autocontrole e profissionalismo, sofrem influência dos casos sob sua responsabilidade. Quando o policial franco-africano Fred Coutard (Joey Starr) tem seus acessos de raiva contra seus chefes e colegas de trabalho ou agride o acusado, há todo um contexto a considerar. Ele está em plena crise conjugal. O mesmo se dá com as policiais Nadine (Karin Viard), Chrys (Karole Rocher) e Íris (Marina Foïs), que vivem no limite. Já não conseguem separar uma situação da outra e têm ataques de nervos.

Então há entre os dois núcleos, o interno, os policiais, e o externo, as vítimas e acusados, um intercambiar de estados psicológicos. Fred ao abraçar o garoto africano Oussman relembra a filha da qual está separado. E Nadine ao se insurgir contra Iris procura se redimir da separação do marido a quem ainda ama. É uma visão diferente da relação policia/vítima/acusado. Muitos filmes policiais hollywoodianos tentam fazer esta ponte e não conseguem. Existem neles apenas a intenção do espetáculo, não criam situações que espelham a inserção dos policiais numa sociedade que também os vitimiza.

É difícil ser indiferente

Se este é um dado positivo, é contundente o tratamento dado por Maïwenn ao objeto central do filme: o abuso sexual e a exploração das crianças e adolescentes da classe média, trabalhadores e imigrantes. Usa, para isto, uma linguagem crua, que não foge às expressões mais intimas deste tipo de abuso. Atesta da garotinha que conta naturalmente a Iris e Mattieu (Nicolas Duvauchelle) como o pai abusava sexualmente dela à mãe que descreve como masturbava o filho de três anos o que ocorre na intimidade de certas famílias. Pior. O pai descreve friamente na delegacia como abusava da filha menor e acha natural.

Eles, os pedófilos, se valem de um jogo para tornar natural sua tara, sem que a criança se sinta abusada. Reflete o que são capazes de fazer para satisfazer seus instintos sexuais. Faz com a criança o que não consegue com o adulto, para satisfazer instinto doentio. O desejo não é dirigido ao adulto que pode trocar com ele, dar-lhe prazer ou não, mas à passiva criança ou adolescente. Ou pode ser a submissão da mulher ou a entrega da filha adolescente a um adulto por questões religiosas, persistentes até hoje. E tratadas por Maïwenn com equilíbrio e sem estigmatização.

Mesmo com um tema desta natureza, Maïwenn consegue dotá-lo de humor, caso da adolescente que aceitou fazer sexo oral com seus agressores para não perder o celular. Fred, Íris e Nadine caem na gargalhada quando ela justifica seu gesto. “É um bom celular” (citação não literal). O celular, objeto de desejo da atual geração, é mais precioso que sua honra. Se os policiais riem, a garota de 16 anos, não. Para ela, mais que uma situação particular, reflete a visão de uma geração que se deixa influenciar pelo consumismo imperante.

Este universo de situações-limites acaba por tornar os policiais insensíveis. Iris já não sente desejo sexual, nem reage quando Nadine a agride ou se deixa envolver pelos casos de abusos sexuais de crianças e adolescentes. Tornou-se “extremamente profissional” a ponto de não suportar o peso e encontrar uma saída nada equilibrada para escapar ao seu meio. Todos acabam, assim, vítimas de uma estrutura social, mesmo num país de 1º Mundo, igual à França, que não dá mais conta de seus impasses e se mostra igualmente doente.

Maïwenn, intérprete de Melissa, a fotografa que registra a ação do BPM, usa em algumas sequências narrativas de filmes policiais (as do aeroporto e do camping) e de documentários (os depoimentos e as situações reais) e um tom sombrio para dimensionar seu tema. Dá com Bercot (Sue Elen, no filme) a visão feminina de um dos problemas inquietantes da sociedade moderna. Sem denuncismo vazio ou a estética da violência. É uma grata surpresa.

“Polissia”. Drama. França. 127 minutos. 2011. Música: Stephen Warbeck. Fotografia: Pierre Aim. Roteiro: Maïwenn/Emmmanuele Bercot. Direção: Maïwenn. Elenco: Karin Viard, Joey Starr, Marina Foïs, Nicolas Dyauchelle, Karole Rocher, Emmmanuele Bercot.
(*) Prêmio do Júri do Festival de Cannes 2011.

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