“Praia do Futuro" Desenraizados
Em filme sobre relação amorosa entre brasileiro e alemão, cineasta cearense Karim Aïnouz trata do desenraizamento na Alemanha
Publicado 23/05/2014 09:23
Não estranhe se a aridez deste “Praia do Futuro” seja ditada pela frieza dos personagens e os incessantes acordes eletrônicos. Ambos provocam estranheza pela forma como o cineasta cearense Karim Aïnouz constrói os entrechos sem emoção ou paixão. Eles são ditados pela relação amorosa do salva vidas cearense Donato (Wagner Moura) e o piloto de moto velocidade alemão Konrad (Clemens Schick), aproximados devido a um afogamento numa praia de Fortaleza, Ceará.
Nem estranhe que Aïnouz (“Madame Satã”, 2002) não se detenha em transições, indicações e preparações, mostrando-os em sucessivas e secas relações sexuais. Inexiste tampouco a natural química entre os personagens, detalhe importante em qualquer mutua atração. Terminam passando a ideia que impõe-se entre eles apenas a relação carnal, dada à frieza com que se entregam um ao outro, sem delicadeza alguma.
Daí a estranheza matizada nos três “capítulos” em que Aïnouz e seu corroteirista Felipe Bragança dividiram o filme. Principalmente nos dois primeiros, tão importantes para o espectador entender a profunda e complexa mudança na vida de Donato e, por consequência, na de sua família. Dentre eles o irmão adolescente Ayrton. A transição de uma sequência para a outra se dá em cortes secos, como se tratasse na verdade de inexplicáveis rupturas. Tal é o caso da partida de Donato para Berlim.
Donato rompe sua carreira
De repente o espectador o vê num parque ao lado de Konrad e custa a entender o que ele faz ali. Um diálogo adiante diz que ele está a passeio. Trata-se de uma tentativa de, na montagem, eliminar as preparações e as transições para criar impacto e “não manipular a emoção do espectador”. Nada mais louvável, porém o filme caminha aos saltos e o espectador perde o interesse. A emoção não aflora, pois a mudança de Donato de país e sua relação amorosa são o eixo central do filme.
Sua paixão por Konrad seria tão forte que ele decide romper sua carreira no Corpo de Bombeiros. Assim o que começou como uma simples viagem evolui para a formação do casal, numa geografia distante de seu habitat. Faltam suas motivações e o espectador tem de encontrá-las nos vácuos deixados pelo roteiro. As indicações que recebe são de que Donato tem saudade da praia, do clima, da mãe e do irmão. Este desenraizamento é ditado pela frieza entre ele e Konrad e a maneira como Aïnouz os enquadra, como se não quisesse flagrá-los na intimidade.
Não bastasse isto, prevalece o estranhamento entre ele e o país onde vive agora. Aïnouz ressalta-o em bem elaborados planos sequências, mostrando-o em ambientes fechados (corredores e quartos), largas ruas e avenidas, mergulhado no gigantesco aquário, com raros instantes de alegria (sua conversa com a balconista do bar). E notadamente o divisar dos prédios tomados pela luz baça, numa dialética expressionista em que o ambiente diminui o personagem. O sexo apenas não é o bastante.
Ayrton dá vida à narrativa
Se nas duas primeiras partes as dificuldades de Donato não afloram, na terceira elas se materializam no personagem melhor construído do filme. E com uma força raramente vista no cinema nacional. Ele descontrói a persona submersa de Donato e constrói-se diante dele. E além disso rejeita o ambiente, a cidade e o país em que vive e com o qual está em constante atrito, pela raiva, rancor e violência que emana de seus gestos e olhares. É o anjo exterminador a acertar contas com o irmão.
Com Ayrton (Jesuíta Barbosa), Aïnouz traz para o tema o contraste entre o Brasil mestiço, afrodescendente, dos loiros (as) miscigenados(as) e os tipos germânicos, caucasianos. Estas diferenças de traços fisionômicos ressaltam-se no encontro de Ayrton com o alemão Konrad no apartamento que este divide com Donato. Em suas vestes negras, cabelos rubro-amarelos e o olhar desafiador, ele se confronta com o alemão. Eles não se desentendem, porém medem-se tomados pelo estranhamento.
Eles, a partir daí, demarcam seus espaços, aceitando um ao outro, como são. Isto também inclui Donato, antes criticado pelo irmão, devido à sua opção sexual. Ayrton termina sendo o personagem que traz emoção e clareza à narrativa, tirando sua aridez e frieza. Ele não perde seus traços nordestinos, pelo contrário acentua-os. E sobressai mais que os demais, justamente pela construção que Jesuíta Barbosa lhe dá. É o típico caso em que o ator/personagem dá equilíbrio e sentido ao filme.
Embora “Praia do Futuro” seja uma obra desigual devido à construção dos entrechos e a opção narrativa, eliminando preparações e transições necessárias à compreensão da história, termina se validando pelo conjunto. Principalmente pelo frenesi da abertura e o clima ditado pelos acordes eletrônicos de Hausohka. Terminam, junto com a fotografia de Göz Kaya, por traduzir a estranheza das frias relações amorosas de Donato e Konrad e a agressividade de Ayrton. E servem para Aïnouz retomar os poemas imagéticos de “Viajo Porque Preciso, Volto Porque se Amo” (2010).
“Praia do Futuro”. Brasil/Alemanha. Drama. 2014. 106 minutos. Música: Hausohka, Montagem: Isabela Monteiro de Castro. Fotografia: Ali Olcay Göz Kaya. Roteiro: Felipe Braga/Karim Aïnouz. Direção: Karim Aïnouz. Elenco: Wagner Moura, Clemens Schick, Jesuíta Barbosa.