Precisamos “desguetizar” a política

Lutemos por um mundo onde a diversidade não precise de restrição

O outro é o lugar onde as nossas pulsões reprimidas se atualizam, já nos alertava Freud. Por essa razão, a construção da alteridade é expediente crucial para a tecitura da identidade, o qual precisa ser constantemente vigiado, pois os riscos são muitos: desde se depositar no outro expectativas de cumprimento, de pressionar sobre ele as nossas frustrações, objetificá-lo como molde à recepção passiva de nossa atuação, enquadrá-lo por heroificação, santificação e por aí vamos. Nesse sentido, não pode haver, em momento algum desse processo, relaxamento, sobretudo quando o outro é um grupo social, étnico, político; sobretudo quando nós atuamos na arena da política, em que a identificação do outro deve vir seguida do compromisso com a equalização do acesso de todos à esfera pública, à integridade da vida social. Essa é responsabilidade antifascista fundamental e exercício da esquerda, premente e urgente nos tempos em que seguimos.

Não é novidade que o identitarismo serviu como estratégia de desarticulação dos movimentos sociais densos, cuja formulação, proposição e agenda eram resultado da busca pela correlação entre as lutas desses grupos enquadrados como “outro” pelo universalismo eurocêntrico caucasiano e masculino e as questões diretamente (ou mais evidentemente) responsivas às movimentações econômicas, políticas, nacionais, históricas e transnacionais. A armadilha foi certeira porque, dentro dos organismos ligados à resistência anticapitalista e antimperialista-colonialista tradicionais, reproduziam-se as mesmas contradições e a mesma dinâmica de exercício de poder que procurávamos modificar, as quais, obviamente, resistiam. Sabemos da inimizade por descolamento entre os movimentos identitários e os coletivos de resistência e proposição tradicionais e, pior, sabemos a quem serviu.

A questão que se apresenta, a essa altura, relativa a nós, ao Brasil dos nossos tempos e ao tamanho dos nossos desafios impele-nos a perseguir as estratégias que devemos adotar para a superação da falsa contradição que se coloca e a forma política que será de todas e todos e que não nos constranja a retirar algumas pautas da mesa. Questão espinhosa! O trânsito é difícil porque hoje assistimos à cada vez mais flagrante segmentação da sociedade, valendo-se da impressão de estigmatização, dogmatismos e liberalização da caça a grupos historicamente marginalizados, como a população LGBTI. Escancara-se, em uma situação de desespero e crise econômica, o racismo como critério de acesso aos mecanismos que dão conta de efetuar a efetivação da cidadania plena, resultado da crueza e crueldade que a escravização de seres humanos negros nos legou e da forma como se atualiza. Observamos a misoginia como política de estado, imiscuída na propaganda oficial e reforçada sobre os mecanismos cotidianos de reprodução da vida material.

Assim, o discurso que afirma a identidade pela produção de culturas desses grupos, que vocaliza o orgulho de resistir às hostilidades que nos comprimem ao descarte, a vociferação da situação de outro não universal, etc. surgiram como mecanismos para a imposição feliz de uma nova gramática política que constrangesse à visibilização e à inclusão das agendas desses grupos. Movimento importantíssimo. Nessa afirmação, contudo, o risco de se proceder à odificação da própria assimetria, à marcação repetida da alteridade como recursos para o desmascaramento da artificialidade dessa universalidade hegemônica, à estetização do oriente dentro do oriente, em resumo, leva também à exotificação da marginalidade, à marginalização do oprimido como conquista, como traço intrínseco até; leva-nos à louvação da marginalidade, à fetichização da assimetria; reafirma, por fim, a esteticização da política, mesmo que agora em outra chave: a positivação insuspeita do fetiche.

O perigo imediato é perder-nos nessa narrativa como estratégia e nos fecharmos dentro de uma redoma, num movimento autóctone que seja incapaz de se articular, de promover mudanças estruturais necessárias ao fim do círculo repetício de marginalização e violência sobre nós, enquanto grupos e segmentos vulnerabilizados. Decorrentemente desse risco, surge outro, de mais difícil detecção e interceptação, porque permeia outras áreas da vida, mas que é tão eficiente ao produzir exclusão e compressões quanto, ou mais ainda: a depreciação da compleição humana das e dos sujeitos e indivíduos. A nossa participação, a nossa pauta, a nossa contribuição é capturada pelo fardo do exercício performática dessa alteridade pública, seja no empunhar monotemático e pouco criativo de bandeiras justas, seja na interdição à expansão em outras vias que não àquelas onde nos aguardam e nos permitem e, além disso, onde esperam que façamos show.

Retomando: Freud explica que em todas e todos nós essa tara pela redução do outro às nossas próprias taras forja as culturas, as protege em algum grau e, ao mesmo tempo, pode tornar-nos obcecados. Será que a sanha assassina que atualiza a pulsão de morte objetificada, transmutada, pois, em pulsão de assassinato, materializada nas incursões policiais sobre os corpos pretos, pobres e favelados nas periferias do Brasil e do mundo não é, em certa medida, a mesma pulsão de objetificação, de possibilidade de expressão das pulsões reprimidas dos mesmos dirigentes de esquerda que aplaudem e encaminham a espetacularização da alteridade? A agressividade, a disputa pública da forma, a demarcação de posições aberrantes não seria, pois, o chancelamento, a resignação e a naturalização da ideia do outro selvagem, mudando-se a valia pelo fato de ser esse selvagem enquadrado como bom ou mau, a depender do lado do espectro político em que nos encontramos?

Se a guetização da política for o contraponto da barbárie e da exclusão, mantemos a mesma lógica universalizante de fundo, divergindo com os fascistas apenas no superficial: aplausos ou extermínio; fascínio ou rechaço. Lutemos por um mundo onde a diversidade não precise de restrição, mas, sendo inerente e natural em todos os espaços e esferas da vida, ela seja a regra, sem guetos, sem permissões, sem espetáculos e sem assimetrias. A guetização da política está para nós como a sua estetização esteve para a geração dos comunistas da resistência. Precisamos desguetizar a política e naturalizar, expandir, universalizar (na cultura, na economia, no ensino, na dinâmica afetiva, na política etc.) a diversidade.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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