Presidencialismo e rupturas políticas

A formação dos Estados nacionais americanos.

Este é o primeiro de uma série de artigos que pretendo escrever abordando as crises institucionais e rupturas no continente americano. Penso que elas são, obviamente, resultantes dos conflitos de forças e classes sociais de cada país, mas também estão relacionadas à ineficácia em mediar tais conflitos por parte do regime de governo adotado, constituindo-se em permanente fator de instabilidade. Neste primeiro exercício, abordo a formação dos Estados americanos e a adoção do regime presidencialista.

Ao analisarmos a história recente dos Estados que compõem as três Américas, excetuando Canadá, Cuba nos últimos 60 anos, e Estados Unidos, verificamos periódicas situações de crises institucionais, não raramente resultando em rupturas e instauração de regimes autoritários, em ciclos que em média abrangem períodos entre 20 a 40 anos. Muitos cientistas políticos atribuem essa instabilidade ao regime presidencialista, pois este seria um modelo com grandes dificuldades em sustentar as práticas democráticas. Isso explicaria a estabilidade canadense, onde o regime é parlamentarista, e Cuba, um regime socialista, mas, e os Estados Unidos? Tal teoria não se aplica a eles?

O presidencialismo nasceu da experiência norte-americana e foi concebido na Convenção da Filadélfia, em 1787, que formulou a primeira e única Constituição do país. Em outras palavras, representou a própria formação do Estado estadunidense. Portanto, um regime de governo que, ainda que adotado em alguns países do continente africano, Ásia e leste Europeu, é um modelo genuinamente americano, originário nos Estados Unidos e adotado pelos demais países do continente. Na Europa, alguns países adotaram um presidencialismo misto e em outros existe a figura do presidente, mas como chefe de Estado e não de governo.

A formação dos Estados Unidos, no entanto, se deu de forma totalmente distinta dos demais Estados nacionais da América Latina. A própria colonização decorreu da ocupação do território por fugitivos das perseguições religiosas no período da revolução puritana na Inglaterra. Formaram 13 colônias no novo território, que posteriormente deram origem ao novo país. A dominação da região, designada de Nova Inglaterra pela metrópole, deu-se pela fragmentação, nomeando governadores para cada colônia, de forma que, administrativamente, eram independentes uma da outra e respondiam diretamente à coroa inglesa.

Essa característica levaria não só a um desenvolvimento desigual de cada uma das colônias, mas também à formação de oligarquias locais com interesses distintos e até mesmo a disputas regionais. A independência dos Estados Unidos foi declarada no dia 4 de julho de 1776, como resolução do Segundo Congresso Continental da Filadélfia, constituído por representantes das 13 colônias que, a partir de então, passaram a ser chamadas de “estados”. Em 1787, onze anos depois, na Convenção da Filadélfia, uniram-se para constituir a nação norte-americana, formulando na ocasião sua Carta Magna.

Os Estados modernos europeus surgiram como decorrência de conflitos de forças e classes internas. Já o primeiro Estado das três Américas surgiu de um processo de independência da metrópole inglesa por parte de 13 colônias. O conflito central que deu origem à nova nação estava relacionado a elemento externo e não a deslocamentos do poder entre as forças internas. Assim, ainda que inspirado nos ideais iluministas, adquiriria características próprias, em especial, o fato de que, para constituir a unidade territorial, deveria respeitar a independência e autonomia de cada um dos 13 estados e dos demais que viriam a surgir com a expansão territorial para o oeste. Seguindo a teoria de Montesquieu, foi constituído com três poderes, sendo, em especial o legislativo, constituído não exatamente como uma representação dos diversos segmentos da sociedade, mas como representação dos estados federados.

Nesta configuração, não fazia sentido a separação das funções de chefia de Estado e chefia de governo, como ocorria na Europa em Estados que adotavam o regime parlamentarista. Ou melhor, fazia-se necessário um chefe do poder executivo com maior concentração de poderes. O equilíbrio a ser mantido era entre os estados federados e não entre as forças sociais e políticas que compunham a nova sociedade. A importância que se deu a uma possível representatividade de diferentes correntes de pensamento nas estruturas de poder foi tão pequena, que o próprio poder legislativo assumiu a forma de representação territorial. Partidos políticos só viriam a ganhar importância por volta dos anos 1930.

Adotou-se então o sistema bicameral. Inicialmente a Câmara Superior, o Senado, era composto por membros indicados pelas câmaras legislativas dos estados. Atualmente, ainda que em muitos estados a indicação tenha passado a ser pelo voto direto, em sistema majoritário, em outros ainda se mantém a indicação indireta. Já para a Câmara dos Representantes, o equivalente à nossa Câmara dos Deputados, estabeleceu-se que a representação dos estados seria proporcional à população, sendo a eleição de cada representante realizada pelo voto direto, em sistema majoritário, em distritos congressionais. Assim, o deputado representa um distrito e não uma corrente de opinião. O mapeamento dos distritos eleitorais, em cada estado, não é fixo, mas definido pelo seu governador, o que nos permite entender um pouco, além de questões históricas, porque um determinado estado é curral eleitoral republicano e outro, curral eleitoral democrata.

A Constituição norte-americana, inspirada no iluminismo, pressupõe a liberdade de organização e, consequentemente, a de organização partidária. Mas conforme pudemos perceber na presente análise, a estrutura de poder construída poderia até mesmo dispensar a participação de partidos. Mais, uma desestabilização do sistema de poder só poderia ocorrer face a disputas entre estados federados e não por conflitos de forças ou classes sociais. E foi exatamente o que ocorreu quando a Câmara dos Representantes se dividiu entre os estados escravocratas e os estados abolicionistas. Tal divisão resultou na Guerra da Secessão e foi a única real ruptura ocorrida até hoje, tendo o sistema se recomposto na sequência.

No restante das Américas, dois países constituíram monarquias como forma de governo ao obterem a independência. O Primeiro Império Mexicano, de curtíssima duração, e o Brasil cujo regime perdurou por mais de 50 anos. A independência mexicana, diferente dos Estados Unidos, ocorreu em território onde havia províncias, mas unificadas em uma administração central na forma de vice-reinado. Ao se constituir o primeiro governo, em 1821, é estabelecido na forma de monarquia constitucional. Em 1824, muda-se o regime para um presidencialismo unicameral, intitulando-se República dos Estados Unidos do México. Deste período até a Revolução Mexicana de 1910, o país viveu um longo e conturbado período com ditaduras, restauração do regime monárquico, conflitos internos e intervenções estrangeiras. À revolução, em 1910, seguiram-se mais de 20 anos de conflitos internos. Em 1929, com a formação do Partido Nacional Mexicano, pelo então presidente general Plutarco Elías Callees – que posteriormente mudaria o nome para Partido Revolucionário Mexicano, PRI – seguiram-se 70 anos de presidencialismo de um único partido.

Na América Central, no rastilho da independência mexicana, as províncias também declararam sua independência em 1921, constituindo a República Federal da América Central, formada pela Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica. No entanto, seguiram-se uma série de conflitos e guerras civis de forma que, menos de 20 anos depois, a República se dissolvia com cada um dos estados constituindo seu próprio Estado nacional. A república federativa, constituída sob a inspiração do Estado norte-americano, obviamente havia adotado o regime presidencialista. Apesar da sua dissolução, os novos Estados mantiveram o regime de governo. A instabilidade política interna que se seguiu nos países da região e persiste até os dias atuais, é por demais conhecida.

Na América do Sul espanhola, os dois principais líderes das independências divergiam sobre a formação dos novos governos. Jose de San Martin idealizava a independência das províncias em separado e constituição de monarquias. Simon Bolivar, inspirado no iluminismo, sonhava com uma américa espanhola unida na forma de uma república federativa de regime presidencialista. Embora ambos tenham logrado êxito no intento de libertação da Espanha, nenhum dos dois sonhos se concretizou. A América do Sul espanhola se fragmentou em Estados nacionais liderados pelas elites criollas de cada província e o regime adotado por cada uma delas foi o presidencialismo. Em toda esta região a instabilidade política também é uma constante.

No Brasil, a proclamação da república em 1889 substituiu a monarquia pelo regime presidencialista e constituiu os Estados Unidos do Brasil. Hoje nossa denominação é de República Federativa do Brasil. Nos 130 anos que se seguiram, o mais longo período de democracia experimentado em nosso país foi o que se seguiu à derrubada do regime militar, instaurado pelo golpe de 1964.  E mais uma vez ela se encontra ameaçada, agora por um presidente de vocação totalitária. Ou seja, nossa história presidencialista é uma história de longos períodos totalitários com apenas pequenas lacunas democráticas.

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