Projeto Brasil: que país é esse?

Com certo atraso, os partidos e coligações que disputam a sucessão presidencial no Brasil aceleram os passos na elaboração das suas plataformas eleitorais. A oposição de direita, liderada por Geraldo Alckmin, reuniu alguns expoentes neoliberais para formu

Já a coligação “Força do Povo”, integrada pelo PT, PCdoB e PRB e empenhada na reeleição de Lula, conta com a assessoria de 32 grupos temáticos responsáveis pela definição das prioridades das ações de governo. Segundo Marco Aurélio Garcia, coordenador do programa, as propostas visam avançar nas mudanças num segundo mandato com vista à construção de um projeto de desenvolvimento. Por sua vez, os movimentos sociais procuram interferir neste processo com suas principais bandeiras. No Fórum Social Brasileiro, as mais representativas entidades, como a CUT, MST e UNE, aprovaram o Projeto Brasil com quatro eixos: soberania, desenvolvimento, justiça e ampliação da democracia.


Radiografia dos problemas


Neste esforço de elaboração programática, as forças políticas contam com uma vasta literatura sobre os principais problemas brasileiros e com variadas propostas para superação destes entraves. A mais recente contribuição neste rumo é o livro “Que país é esse?”, uma coletânea de 10 artigos organizada pelo geógrafo Edu Silvestre de Albuquerque e prefaciada por Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Apesar de a apresentação declarar abertamente “uma postura de decepção com o desempenho do governo de esquerda empossado em 2003”, a obra faz uma abordagem bastante plural sobre os desafios atuais a partir da ótica “geográfica e espacial”.


Num dos ensaios mais instigantes, Leila Christina analisa “por que os bancos são o melhor negócio no país?”. Após um breve relato histórico sobre a expansão do sistema financeiro a partir do final dos anos 50, a autora demonstra que este setor ganhou forte impulso durante o reinado de FHC, no bojo do processo de desregulamentação imposto pela ofensiva neoliberal mundial. Depois de lucrar com a chamada transferência inflacionária, que rendeu aos bancos cerca de US$ 15 bilhões por ano no período da hiperinflação, os banqueiros foram beneficiados por inúmeras medidas liberalizantes.


Em 1995, o Banco Central implantou o Programa de Estimulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que custou aos cofres públicos cerca de R$ 21 bilhões. No mesmo ano, o governo abriu o setor à invasão do capital externo. Entre 1997 e 2002, o patrimônio líquido dos bancos estrangeiros cresceu de 14,3% para 32,9% e seus ativos pularam de 12,8% para 27,4%. Já em 1997, ele criou o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual (Proes), que liquidou três bancos estaduais e privatizou outros doze. Também houve a liberação das taxas de serviços, que “atualmente cobrem toda a despesa dos bancos com pessoal”.


Para autora, o que existe hoje é uma hegemonia mundial do capital financeiro, que mobiliza mais de US$ 1,8 trilhão por dia – setenta vezes mais do que é movimentado na economia real. No triste caso brasileiro, “os bancos ganham em todas as frentes: conseguem rentabilidade alta com riscos baixos comprando títulos da dívida pública federal e realizam empréstimos a juros muito superiores à média internacional – a rentabilidade média das operações de crédito no Brasil é de 32%, contra a média mundial de 11%”. Para ela, sem mudar esta lógica será impossível enfrentar os problemas nacionais. 


Outro estudo interessante, de Marcelo Lopes de Souza, trata do aumento da violência e do medo nas cidades. Ele mostra que isto decorre da brutal desigualdade social no país e que não será resolvido apenas pela via policial, como prega a chamada classe média. Para ele, está em curso uma perigosa polarização: numa ponta, os enclaves territoriais controlados por criminosos e onde vivem as populações mais pobres; na outra, as cidadelas fortificadas onde se refugiam os mais abastados. Esta situação agrava a segregação, os preconceitos e a reações de pânico e histeria, sempre retroalimentados pela mídia.


Na mesma linha, os demais autores tentam decifrar outros graves problemas estruturais. Maria Laura Silveira tenta responder “porque há tantas desigualdades sociais”; Luis Lopes Diniz dá importantes pistas sobre “para onde irão as indústrias brasileiras”; Fausto Brito e José Carvalho polemizam sobre a idéia de que “somos um país de jovens”; Bertha Becker indaga se “manteremos a soberania sobre a Amazônia; Ricardo Castilho prova que “exportar alimentos não é a saída”; Dirce Maria aborda os graves problemas ambientais; e Pedro Vianna alerta para o papel estratégico da água na atualidade.


As ponderações de Lessa


O texto mais polêmico, porém, é do próprio organizador do livro. Edu Silvestre embarca na estranha tese, defendida no passado por Paulo Schilling, de que o Brasil exerce uma estratégia subimperialista na América Latina. Para ele, o discurso oficial em defesa da integração “não passa de retórica, na medida em que a ótica comercial é insuficiente para resolver os graves problemas sociais regionais”. A partir de uma leitura negativista, ele afirma que essa lógica predominou na história do Itamaraty e que se mantém no governo Lula. Neste sentido, ele não vê diferenças entre as políticas externas dos governos FHC e Lula, que manteriam pretensões subimperialistas e a dependência diante dos EUA.


Essa visão unilateral é bombardeada no próprio prefácio do livro pelo economista Carlos Lessa, que hoje não é propriamente um defensor do governo Lula. Conforme pondera, “fiquei até certo ponto surpreso com a omissão de alguns fatos que vêm acontecendo nos últimos dois anos”. Ele detalha os acordos firmados com o governo da Venezuela; as novas relações com Cuba; o esforço para retomar o Mercosul num novo patamar; e o papel do BNDES no fomento à infra-estrutura sul-americana.


“Essas iniciativas não apontam para uma busca de hegemonia ou uma posição imperial no comércio intercontinental. A suspeita da Alca como má alternativa, a truculência da diplomacia imperial, a estagnação relativa dos países do continente e a falta de solidariedade com a tragédia argentina ensinaram aos povos sul-americanos a importância da integração sem nenhum subimperialismo”, ensina o professor. Estes e outros aportes fazem do livro “Que país é esse?” uma obra indispensável para todos os que envolvidos na elaboração de um pensamento estratégico para o Brasil.

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