Quando o épico se trai: Judas e o Messias Negro X Os 7 de Chicago

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A paralela que apresenta Os 7 de Chicago, precedida pela inserção de fragmentos de discursos oficiais e recortes de documentos da época – década de 1960 nos EUA em contexto de guerra fria e, especificamente, guerra do Vietnã – , pode ser a tentativa de retardar ou mesmo inviabiliza a identificação imediata da audiência com os personagens que dão liga e fundamento à narrativa épica. Aaron Sorkin, roteirista e diretor do filme produzido e exibido pela plataforma streaming Netflix e que teve estreia em outubro de 2020, respondendo críticas que recebera na ocasião a respeito do resultado que entrega, já emitiu algumas declarações que sustentam justamente a necessidade de distanciamento em relação às personagens, o que justificaria a abertura da fábula materializada na amplitude da perspectiva cinematográfica – dos planos – e nas escolhas que presidiram a direção de edição. Em resumo, uma perspectiva épica para uma matéria épica. A saber: a acusação de oito manifestantes de terem, de forma conjunta e planejada, organizado tumultos com vistas à implosão da convenção nacional do partido democrata, ocorrida em agosto de 1968.

No mesmo período, enquanto se desenrolavam os protestos de Chicago, outra trama tomava corpo: o assassinato de Fred Hampton pelo FBI, comandado pelo abertamente racista, segregacionista e supremacista Edgar Hoover. Lançado em dezembro de 2020, Judas e o Messias Negro, dirigido e roteirizado por Shaka King e produzido pela Warner, se dispõe a dramatizar a história da emboscada urdida pelo estado norte-americano a partir de uma perspectiva subjetiva e interna. Para isso, insere-se o  narrador dentro da estrutura do partido dos Panteras Negras em Chicago, trazendo ao primeiro plano as relações entre Fred Hampton e Bill O ‘Neal, este ocupando à época a função de chefe da segurança do líder Hampton, o qual posteriormente confessaria a situação de membro infiltrado pelo FBI na organização.  Ao introduzir o filme e seu enredo, as imagens de cobertura dos primeiros minutos, também aqui retiradas de arquivos da época, além dos planos de continuidade por reconstituição, optam por focalizar seus protagonistas em primeiro plano e, assim que transiciona para a diegese propriamente dita, apresenta uma sequência de apresentação de O’Neal marcada por uma pontuação sonora que nos arrasta diretamente para o conflito que o filme desenvolve. A identificação com os protagonistas torna-se  a chave para a extensão dramática em cena de uma matéria tão épica quanto o caso dos oito de Chicago.

A comparação entre as duas sequências de abertura pode nos auxiliar a compreender algumas questões que giram em torno dos filmes, seus resultados e impactos na crítica e no público: qual a razão da diferença de tratamento nas apresentações que denunciam as tônicas distintas dos filmes? Como as críticas que a Direção e a Fotografia receberam e as respostas a elas demonstram a indissociável correlação entre técnica, pontos de vista global e específico e política? E, por fim, o que é perspectiva épica que nos interessa?

Sorkin, um dos mais respeitados roteiristas da contemporaneidade, foi duramente criticado por Os 7 de Chicago, seu primeiro trabalho assinando a cabeça da Direção. A crítica gira em torno da debilidade dos seus personagens protagonistas e sua indefinição focal nesse sentido, da diluição da densidade da atmosfera e consequentemente do conflito intersubjetivo e extradiegético pela pouca consistência da oscilação entre humor e drama e pouca profundidade no trato da questão. As câmeras abertas, os discursos políticos muito engessados que forjam os conflitos das personagens e os movimentos de câmera e captura pouco instigante saltam aos olhos. Eles distanciam os personagens e, como dito, foram declarados pelo diretor-roteirista como meios para ampliação da dilemática rumo à uma integralidade épica em detrimento de uma tensão dramática dada por tensionamento e identificação. Judas e o Messias Negro é abundante em perspectiva subjetiva, closes e investe na preparação da caracterização da atuação.  King, assim, pretende focalizar a dilemática de O’Neal imprensado entre o FBI e a causa que acabara de conhecer e com a qual imediatamente simpatiza, investindo para tanto, na mesma medida, na expansão dramática do personagem Hampton por uma caracterização carismática e multifocalizada, sempre valorizando o primeiro plano e o derramamento relacional intersubjetivo.

O que King faz é propor a narrativa pela adesão imediata aos protagonistas,  levando-nos para a jornada imersos em seu anti-herói. Isso é importante porque, vivenciando a trama dentro ou junto com o O’Neal personagem, e só através desse mergulho no abismo, nós podemos vislumbrar a dimensão externa, macroestrutural, épica, pois, da matéria e, assim, do assunto do filme. Trocando em miúdos, isso significa apontar que apenas experimentando a identificação com as emoções do protagonista, que é feito e vive como angústia o dilema entre dois antagonistas (ou oponentes), nós entendemos a exatidão do que eles, enquanto personagens, são na trama e o que referenciam dentro e fora: Hampton é o lugar comunitário agora percebido, a configuração de uma causa maior e a redenção;  Roy Mitchell, por outro lado, é a encarnação da política persecutória, da retórica sedutora e da fachada integradora do FBI e do próprio Hoover.

Sorkin, ao contrário, impede a identificação, recorrendo a movimentos de câmera super velozes, à brevidade do enquadramento, à inserção dos arquivos no início e no clímax do segundo ato. Ainda, ao fraturar a tensão dramática por uma série de recursos – “smash” cortes, ampliação do quadro, colagem por inserção de imagens de arquivo, introdução do cômico no momento de ápice do dramático -, o que o diretor entrega é uma tramóia político-burocrática que, todavia, privilegia os aspectos burocráticos em vez da profundidade política. As sucessivas descontinuidades e o desaparecimento do compromisso político do Procurador-Geral do EUA, a falta de explicitação da relação entre o juiz e a promotoria, o retardado e breve surgimento do procurador imediatamente anterior, a caricaturização de Bobby Seale e dos Panteras Negras, o tratamento superficial das divergências entre os sete acusados no julgamento, dentre tantas outras opções revelam, na unicidade da perspectiva que atravessa do roteiro ao corte final, uma “trama total” sem foco. Falta, assim, a assunção do ponto de vista narrativo; em nome de uma pureza épica, Sorkin demite a dramaticidade e, sem o que pôr no lugar, entrega um mosaico que pretende, sem sucesso, abarcar um evento político. Falta posicionamento – ou profundidade e clareza de posicionamento – aos 7 de Chicago, o que é imprescindível a qualquer epopeia. Confundindo antidramático e épico, Sorkin mira alto e acerta no eletrizante e politicamente correto, sem mais nada daquilo que uma obra baseada neste julgamento exige.

Aqui, ficamos com um exemplo de como o drama-da-vida é contíguo ao drama subjetivo e como, para a figuração do conteúdo épico, não necessariamente é imprescindível a distenção dramática. Ficamos com o todo e uno de Judas e o Messias Negro, que não se desculpa por tomar partido; ficamos de pé gritando, “eu sou um revolucionário”, mastigando, enfim, o nó na garganta provocado pela descontinuidade e pela fragmentação superficial de Os 7 de Chicago.

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