Reflexões sobre o capitalismo em crise. (V) O processo da contradição

O transcurso lógico n’O Capital (e estudos da economia política correlatos), de Marx, revela os impulsos que levam o capital a ir eliminando o trabalho necessário; a ir se separando do tempo de trabalho como elemento determinante, preestabelecido na produção, medida e fonte de riqueza.

Aí está a contradição em processo: capital X trabalho e simultânea negação da fonte de valor forjado por uma determinação essencial, a concorrência intercapitalista. Isso significa que, ao investir necessariamente no incremento do progresso técnico, em inovações tecnológicas, para liquidar a concorrência adversária, liquida-se paulatinamente a base de reprodução de valorização do valor (mais-valia): o trabalho (capital variável).

Esse é o movimento concreto do capital em sua relação social, acentuando-se progressivamente contraditório: a) porque a expansão pretendida da valorização tropeça com barreiras internas ao próprio capital; b) torna cada vez mais redundante o trabalho vivo ultrapassando suas possibilidades de realização como valor-capital; c) a aceleração da acumulação leva à crise, e esta deflagrada recria as condições para a retomada da acumulação, aparecendo um lado de sua dinâmica sequenciado em expansão-barreira-expansão. [1]

Kalecki, investimento inovação (obstáculos)

Nessa direção, analisando no pós-2ª Guerra os óbices estruturais ao desenvolvimento das economias capitalistas centrais, o marxista polonês Michal Kalecki, em uma de suas conclusões principais, considera que a incontornável concorrência intercapitalista aliada ao incremento do progresso técnico impedem uma natureza estática do sistema capitalista. Isto é, a instabilidade sistêmica de caráter estrutural, é condicionada pela dinâmica irregular do investimento.

Kalecki conseguira assim captar prospectivamente as tendências inelutáveis de instabilidade crônica do capitalismo, decorrente da descoordenação das decisões de investimento, hoje amplamente potenciado pelo processo de “financeirização” contemporânea da riqueza.
Simultaneamente, nas conclusões de seu mais famoso estudo [2], Kalecki assinala que o enfraquecimento (baixo crescimento; estagnação) das economias capitalistas em “seus últimos estágios de desenvolvimento” se daria “em parte” pelo declínio da intensidade das inovações. Isto influenciado por: a) importância decrescente da abertura fontes de matérias-primas; b) a acentuação do monopolismo capitalista (oligopólios etc.) dificultando a aplicação ampla de novas invenções; c) a proliferação de indústrias de bens duráveis (automóveis etc.) cujo investimento é menor e se destina mais às montagens.  Essas eram ideias avançadas de Kalecki.

O processo da contradição em dupla face

Face A

Notadamente em sua dinâmica concreta, ou seja, na macroestrutura financeira desse capitalismo do nosso tempo, realizam-se: 1) operações monetário-financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições (bancos centrais relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações financeiras, pelas grandes corporações e pelos proprietários de grandes fortunas); 2) operando em várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas, dos ativos, gerindo os mercados interligados de crédito e de capitais, ampliando “as transações cambiais autonomizadas em relação ao comércio internacional, direcionando a ‘poupança financeira’ e a liquidez internacional” [3]

Ora, tais incertezas que cercam as decisões de investimento surgem especialmente vinculadas à natureza do progresso técnico atual, ou por oscilações crônicas das variações dos preços dos ativos financeiros, determinando ou não as decisões de gasto dos capitalistas. Pois, no capitalismo é-lhe constitutivo a instabilidade, ao invés de estabilidade, não havendo nele nenhum compromisso com qualquer tipo de tendência – para o crescimento contínuo ou à estagnação -, e muito menos com a noção de equilíbrio, especialmente na ideia de pleno emprego. (Cf. Braga, idem, p.140.) Evidente e indiscutível a instabilidade e crises “como norma” (Barroso).

Não à toa e conforme o especialista Richard Freeman (Harvard) dos anos 1980 à metade dos 2000, o emprego tem mostrado atraso cada vez maior com relação ao PIB (Produto Interno Bruto) nas recuperações econômicas; nos EUA houve uma recuperação sem empregos nos governos Bill Clinton, até que surgisse o boom da internet no final dos anos 90; nova recuperação sem empregos em George W. Bush, depois da crise de 2001.

Destacara então Freeman: “É difícil imaginar que os Estados Unidos voltem a encontrar o pleno emprego, ao menos em um prazo previsível. De 1993 a 1998, os EUA criaram milhões de postos de trabalho, e isso elevou em 5,4 pontos percentuais o índice de emprego no país”. E prosseguia então ele: “Devemos aos trabalhadores que caíram vítimas da recessão uma reinvenção das finanças de maneira que funcionem como forma de enriquecer a economia real, em lugar de enriquecer apenas os financistas”. [4]

A-1. Notemos então que sucedeu com a evolução daquilo que o estatístico John Williams denomina de “depressão americana”, relativamente ao mergulho do PIB:


Fonte: http://www.shadowstats.com/article/depression-special-report

A-2. Vejamos agora o significado real de “Com 25 mil sem-teto, Los Angeles vive situação de emergência”, título de reportagem datada do último dia 6 de novembro. Lá se lê que Los Angeles só perde para Nova York o posto de cidade com mais sem-teto dos EUA: 25 mil numa população de 3,8 milhões (NY tem 58 mil e 8,5 milhões de residentes). “Todo dia – declara o prefeito da cidade Eric Garcetti –  a gente vem trabalhar aqui e presencia os sem-teto no gramado lá fora. É um símbolo da intensa crise que vivemos” M.as, como assim: não havia “recuperação” da economia dos EUA? disse Georgia Berkovich, diretora de políticas públicas da Midnight Mission, a maior e uma das mais antigas instituições do local. “Não temos números assim desde a Grande Depressão. E, cada vez mais, o número de famílias sem teto aumenta. São 30% da nossa comunidade agora”, diz Berkovich, voluntária na organização por 17 anos e foi contratada em 2010). (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/11/1702886-com-25-mil-sem-teto-los-angeles-vive-situacao-de-emergencia.shtml). [5]
Agora vejamos o recente gráfico de Williams sobre a evolução da taxa de desemprego oficial, até 2015, do governo dos EUA (linha vermelha) e a projeção alternativa estatística do economista (em azul):

Acompanhemos então. Em janeiro passado estimava-se que número de pessoas sem trabalho deveria crescer em 11 milhões nos próximos quatro anos, e isto ‘está agravando as desigualdades no mundo”, advertia a Organização Mundial do Trabalho (OIT) em um relatório de projeções. (http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2015/01/19/oit-preve-que-desemprego-cresce-ate-2019.htm). Estimava-se ainda que em 2019 mais de 219 milhões de pessoas poderão estar sem trabalho no planeta.
Segundo o relatório publicado em outubro último, neste ano deverá haver 201,6 milhões de desempregados no mundo, pouco mais de 2 milhões a mais do que em 2014. Deste total, 73,4 milhões são jovens com até 24 anos. (http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/10/desemprego-de-jovens-no-brasil-deve-superar-media-mundial-diz-oit.html)

Face B

Configuram-se atualmente megas mudanças tecnológicas objetivando atingir uma nova etapa da automação, na nanotecnologia, na robótica, na inteligência artificial, nos novos padrões energéticos, na neurociência, nos novos materiais, em novos processos de organização da produção. É provável, portanto, que esses novos processos e fenômenos (novas técnicas, novos conhecimentos, novos aportes científicos) impulsionarão certas transformações produtivas, a concentração e centralização de capitais, a concorrência na esfera de monopólios e oligopólios, reimpactando necessariamente na renda e no emprego dos trabalhadores, em qualquer parte.

De outra parte, para o sul-coreano Ha Joan Chang (Cambridge), especialmente no nono capítulo Não vivemos na era pós-industrial, de seuinteressanteestudo,[6] e dissertando exaustivamente acerca de novamorfologia capitalista, lembra que lojas e escritórios substituíram enormemente as fábricas em que se trabalhava e a maioria das pessoas conheciam como símbolos da sociedades moderna.

Mas, atenção – resumo aqui,Chang: a) não ingressamos em um estágio de desenvolvimento pós-industrial no sentido de que a indústria deixou de ser importante; b) maior parte (embora não a totalidade) do encolhimento da parcela da manufatura na produção total não se deve à quantidade absoluta de bens manufaturados produzidos e sim à queda nos seus preços em relação aos dos serviços, o que é causado pelo seu crescimento mais rápido na produtividade (produção por unidade de insumo); c) embora a desindustrialização se deva principalmente a esse crescimento diferencial de produtividade através dos setores, ele tem consequências negativas para o crescimento da produtividade na economia como um todo e para o balanço de pagamentos (contas externas do país), o que não pode ser desconsiderado; d) um escopo limitado deles para um crescimento da produtividade torna os serviços um mecanismo de crescimento ineficaz, onde “a baixa negociabilidade dos serviços” (fornecimento de refeições, suporte técnico, cabelereiro), significa igualmente que uma economia mais baseada em serviços terá uma menor capacidade de exportar; e) as receitas menores com a exportação “significam uma capacidade mais fraca de adquirir tecnologias mais avançadas de outros países”, o que por sua vez conduz a um crescimento mais lento; f) é certo que alguns setores de serviços tem um potencial de crescimento de produtividade mais rápido, “particularmente os serviços baseados no conhecimento” (serviços financeiros, consultoria, design, computação e informação, P&D); g) o país que basear o seu desenvolvimento desde cedo no setor de serviços, a sua taxa de produtividade a longo prazo “será muito mais lenta do que se ele tiver apoio no setor industrial”. Vejamos, a propósito, como a depressão (John Williams) afetou a produção industrial nos EUA, logo em seu início:


Para Chang, trata-se de uma “fantasia”achar que os países em desenvolvimento podem passar por cima da industrialização e construir a prosperidade baseando-se nas indústrias de serviços: a maioria dos serviços apresenta um lento crescimento de produtividade e quase todos os serviços que têm um crescimento de produtividade elevado não podem ser desenvolvidos na ausência de um forte setor industrial (Chang, idem).

Considerações finais inconclusas

  • Sabemos que os desdobramentos sociais da grande crise capitalista global, iniciada em 2007-8 continuarão a incidir de maneira trágica, notadamente no centro capitalista, mas não só. Considerando-se ademais que hoje a economia global convergiu regressivamente para: a) endividamento muito elevado; b) médias de crescimento econômico muito baixo (exceto a china); c) expansão e crescimento das desigualdades; d) deflação e tendências deflacionistas nos principais países capitalistas; e) ondas ideológicas reacionárias e neofascistas originariamente emanadas no mesmo centro capitalista em crise.
  • Analisando, a propósito da crise capitalista atual, um ângulo fundamental da situação da força de trabalho deste capitalismo “financeirizado”, segundo o marxista indiano P. Patnaik teríamos cerca de 63% da força de trabalho global ou quase dois terços dela, representando trabalhadores que estão ou desempregados, ou “desencorajados” (desempregados por desalento), ou “empregados vulneravelmente”, cujo conjunto constituiria hoje o “exército de reserva”, ou o segmento vulnerável da força de trabalho mundial. (em: “A estrutura mundial da força de trabalho”).

 (http://peoplesdemocracy.in/2015/1025_pd/structure-world-labour-force).

  • Ora, marcha da contradição em processo do capitalismo é prenhe de historicidade. Do ponto de vista da dialética marxista, as contradições internas irrompem a novas formas e novos movimentos, o que alimenta o estabelecimento de novas contradições. Entretanto, o longo processo histórico da contradição fundante da dinâmica econômica do capitalismo acima apresentado não se resolve teoricamente. Quer dizer, a ruptura necessária com este modo de produzir baseado na eliminação da sua base de sua própria fonte de criação de riqueza passa pela superação material e objetiva desse modo social de produzir.
  • Novas formas. É por tais razões admirável que, na consagrada obra de John Kenetth Galbraith, “A crise econômica de 1929. Anatomia de uma catástrofe financeira”, no capítulo “O crepúsculo das ilusões” (p. 122), lê-se logo antecedendo que, no frenesi especulativo das novas emissões de títulos e ações, e especialmente àqueles de maior demanda, [elas] “não se encontravam registradas no Big Board” (quadro de cotações da Bolsa de NY).  Antecipando-se em muito o que comentamos nesta série, acerca da recente criação do shadow banking system (sistema financeiro sombra) lá desvelou o grande economista canadense: “No entanto, as transações efetuadas na Bolsa de Nova Iorque já não eram um bom índice do interesse total pela especulação em títulos”. (…) e muitos mais [os] que achavam convenientes não responder aos mais elementares questionários da Bolsa”! [Galbraith, sobre o Verão de 1929, Dom Quixote, 1972, 4ª edição]

 

NOTAS
[1] Ver: “Notas introdutórias ao capitalismo monopolista”, J.C.Braga e F. Mazzucchelli, em: Revista de Economia Política, 1981, vol. 1, n.2, p. 57, abr.-jun. (www.rep.org.br )
[2] Ver: “Teoria da dinâmica econômica. Ensaio sobre as mudanças cíclicas e a longo prazo da economia capitalista”, Abril Cultural, 1983[original 2ª edição de 1965], cap. Os fatores do desenvolvimento, p. 133-4.
[3] Ver: “Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo”, J.C. Braga,  UNICAMP. IE, 2000.
[4] Ver: “Uma recuperação sem empregos? ”, R.Freeman, Folha de S. Paulo, 10�12010.
[5] Veja também a impactante reportagem da BBC-Brasil sobre o crescimento da pobreza nos EUA no vídeo abaixo: (https://www.facebook.com/elvis.rocha.925/videos/973310969392421/?fref=nf)
[6] Ver: 23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo, J.Chang Cultrix, 2013.

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