Reunião de Mercosul e Aliança do Pacífico celebra a ironia da história

Amanhã, dia 24, acontece no México a primeira cúpula reunindo os presidentes do Mercosul e da Aliança do Pacífico. O encontro é revestido de um caráter inusitado, já que divergências profundas marcam esses dois modelos de integração.

Ilustração: Tainan Rocha

Outras reuniões já foram realizadas em nível ministerial – Buenos Aires sediou a última delas, em abril – preparando as bases de uma aproximação. Alega-se a tanto a busca de convergências entre os acordos comerciais já existentes como a necessidade de se fazer frente ao endurecimento das normas comerciais norte-americanas. O fortalecimento do multilateralismo – que já vinha sob ataque durante o governo de Barack Obama – curiosamente é a bandeira levantada pelos governantes latino-americanos, quer estejam olhando para o Pacífico, quer estejam para o Atlântico.

A Aliança do Pacífico foi instituída formalmente em 2012, a partir de uma iniciativa do governo peruano durante a presidência de Alan García. Seu partido, a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) foi o primeiro fundado no continente tendo como objetivo final a integração. Lá em 2012, tanto Alan García como o partido já estavam distantes desse legado histórico e do pensamento de seu fundador, Haya de la Torre, para quem o maior adversário dos latino-americanos era a visão estreita de elites dirigentes cooptadas, “vassalas” e “apóstatas de Bolívar”.

A Aliança foi composta ainda por México, sua economia mais importante, Chile e Colômbia, além de contar com estados observadores. Sua proposta era uma abertura de mercados (especialmente EUA e China) com protagonismo para os empresários, que tem conselhos exclusivos na estrutura institucional, e não para a sociedade civil. Além disso, vinha nesse pacote a defesa diminuição da atuação estatal e a adesão às negociações dos mega acordos de livre-comércio.

O que não estava bem esclarecido era como se poderia falar de integração sem um projeto de desenvolvimento. Entre os países da Aliança, apenas o México tem base industrial relevante e, mesmo assim, está previamente atrelado ao NAFTA. Chile, Colômbia e Peru são predominantemente exportadores de commodities. Falar somente em abertura comercial é se negar a construir uma integração que realmente exista.

Existe uma explicação para essa contradição: os quatro fundadores da Aliança estavam, à época, conduzidos por políticas externas alinhadas aos EUA. O novo bloco foi apresentado e se apresentou em textos oficiais como um contraponto aos esforços mais profundos de integração: os bons entendedores perceberam o claro ataque ao Mercosul, à Unasul e à ALBA.

Aquele seria um modelo “pragmático” e contrário a conduções “ideológicas”. Ora, na América Latina, por trás de todo discurso que se apresenta ao público como “pragmático” em política externa existe uma orientação de Washington. A Aliança foi, na verdade, a retomada de conceitos que haviam sido enterrados com o fim da ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas planejada pelos EUA e sepultada por Lula, Kirchner e Chávez em Mar del Plata, em 2005.

De fato, a pauta da época da fundação da Aliança centrava-se nos novos acordos de livre-comércio. Os EUA, procurando ampliar seus benefícios superando as resistências que encontraram na Organização Mundial de Comércio (OMC), um ambiente institucional que parece não lhes interessar mais, passaram a construir novos acordos, tanto bilaterais como gigantescos. Novas normas sobre meio-ambiente, propriedade intelectual, dentre outras, estavam em negociação nesse âmbito, enfraquecendo a OMC.

Com um olho na aliança como a Europa, os Estados Unidos empreendiam as negociações pelo Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento (TTPI, na sigla em inglês). Com o outro no Pacífico e visando abertamente se contrapor ao avanço econômico da China, fechavam as cláusulas do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês). Tudo em reuniões secretas, sem qualquer participação da sociedade civil dos países envolvidos. Muito se elogiou esses tratados como caminhos mais adequados para a liberalização. Convenientemente, o sacrifício do multilateralismo outrora tão defendido era ignorado. Rezava aquele credo (que se dizia “pragmático” e não “ideológico”) que o mundo viveria uma nova era de grandes e livres fluxos comerciais. Quem ficasse de fora estava fadado ao fracasso, garantiam, para alertar que seria esse o caso dos países do Mercosul.

Mesmo amparado em sua história de organismo de integração mais bem-sucedido da América Latina, o bloco era atacado por se contrapor ao mero adesismo àquela nova política externa comercial evidentemente ditada desde Washington e a partir de seus interesses. O Mercosul, durante os governos progressistas, assumiu a defesa da democracia, criou o Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM) para lidar com as assimetrias regionais, abriu espaço institucional para a participação da cidadania – para além dos governos – e instituiu um parlamento regional, o Parlasul, buscando aprofundar a integração política. Por tudo isso, incomodou (e incomoda) quem se opõe à existência de um projeto de integração que vá além do aspecto comercial.

Claro, há problemas e dificuldades no bloco. Apesar desses avanços, do ponto de vista comercial o Mercosul não conseguiu ir além de uma união aduaneira imperfeita. Há dificuldades para se eliminar por completo as tarifas para o comércio entre seus próprios membros, com revisões rotineiras das listas de exceções à tarifa externa comum. Contudo, isso não se deve a esse ou aquele modelo de integração, mas sim aos condicionamentos da própria estrutura dos países do bloco, suas assimetrias, as demandas dos setores que se revezam no poder, dentre outros. O grande avanço do ciclo de governos progressistas foi justamente ampliar as instituições de integração apesar das limitações no plano comercial (que já vinham assim desde a década de 90).

Quando se avalia os resultados da Aliança do Pacífico, vendida como uma versão de integração que “dá certo”, fica ainda mais evidente esse avanço do Mercosul. O comércio entre os países da Aliança (afinal, em termos pragmáticos, é isso o que importa quando se trata de liberalização) é muito baixo. Em 2015, o Peru, responsável pelo maior percentual de comércio no interior do bloco, tinha ali menos de 10% de seu total. O Mercosul é muito mais expressivo.

Mas a conversa dos “pragmáticos” do livre-mercado não contava com a eleição de Donald Trump e nem eles imaginavam que a os mega acordos em negociação voariam pelos ares. Trump abandonou o TPP, abriu renegociações com o NAFTA (expondo o preço vil dos anos de subserviência do México), iniciou uma guerra comercial contra a China, atacou a União Europeia e intensificou o protecionismo norte-americano. Os neoliberais latino-americanos, sempre apressados em seguir as orientações do norte, terão algum tempo para cravar o olhar no horizonte e refletir sobre as ironias da história. Fica a lição: no fim do dia, se sai melhor quem define suas próprias prioridades e não fica a reboque da imprevisibilidade dos mais fortes. Portanto, é outro o cenário internacional que serve de pano de fundo para o encontro de amanhã entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico.

Internamente, também nos afastamos muito de 2012. O Mercosul, institucionalmente moldado nos últimos anos para ser a espinha dorsal de uma integração mais profunda, chega ao encontro governado pela direita que passou os últimos anos atacando esse modelo de integração. Por sua vez, a Aliança, um braço liberal e de orientação norte-americana barrando o Mercosul, chega tendo sua maior economia, o México, com um presidente eleito crítico ao modelo da Aliança. Completando a ironia, é a posição dos EUA que leva os dois blocos latino-americanos a buscarem uma aproximação para sobreviver à nova política comercial de Washington.

Para amanhã, não devemos esperar uma capitulação do Mercosul diante de a Aliança. Mesmo que seus governos o desejem, as instituições forjadas durante as gestões progressistas não podem ser suprimidas a golpe. Tampouco é razoável imaginar uma adesão da Aliança ao projeto de integração que o Mercosul, a despeito da vontade de seus atuais líderes, ainda traz consigo.

Virão, certamente, declarações de princípios voltadas para a defesa do livre-comércio, com tímidos contrapontos à Washington. Mas, nem isso esconderá que uma reunião de latino-americanos buscando um caminho próprio e apartado das determinações dos EUA demonstra o acerto das teses do novo regionalismo proposto pelos governos progressistas. Mesmo dessa forma tortuosa, fica evidente que o caminho para a América Latina é, como sempre foi, o da aproximação e o da construção de convergências, ainda que a contragosto de certa elite dirigente.

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