“Sangue Negro”: Geopolítica do petróleo

Filme do diretor Paul Thomas Anderson, baseado no romance do escritor socialista Upton Sinclair, traça um perfil do capitalismo a partir da vida de um magnata do petróleo nos Estados Unidos e seu embate com os concorrentes e um pastor protestante

Upton Sinclair era um escritor que primava pela radicalidade. Pegava os personagens e os inseria numa realidade que os tornava parte dela, a ponto de moldar seu caráter e suas mínimas reações. Em “Oil”, de 1927, ele pega o explorador Daniel Plainview e o faz interagir com a rude paisagem do Novo México, região inóspita, dominada pela vegetação rala, queimada e agressiva, e a ambição de construir um império do petróleo, entre 1898 e o início do século 20. O resultado é que a rudeza do meio ambiente o torna tão seco quanto montanhas, vales e estreitas planícies, onde procura o óleo que criará impérios, provocará guerras e criará todo um estilo de vida. Sua visão do capitalismo impregna sua obra de uma urgência que agarra personagens e leitores, levando-os à exasperação. Igual à que sentimos ao assistir “Sangue Negro”, que serviu de ponto de partida para o vigoroso filme do diretor estadosunidense, Paul Thomas Anderson (“Magnólia”, “Boogie Nights”). E ficamos desta forma entregues ao que ele nos apresenta.



             


Em “Sangue Negro” temos Daniel Plainview encarnando, literalmente, por Daniel Day-Lewis, do início ao fim. A ponto de, em certos momentos, ele parecer um daqueles animais do deserto que não conseguem viver longe das pedras, da areia e das árvores que sobrevivem num meio adverso. Ele vai moldando seu caminhar a cada acidente, quebra de parte do corpo e adversidades que ele dribla mais por ter se tornado parte da paisagem do que apenas por esperteza. Este caminhar, no entanto, não advém só da troca de passos, mas do traçar o objetivo e cumprir cada uma de suas etapas. Mesmo que tenha de adotar métodos nada éticos ou moralmente inaceitáveis. Plainview vira um animal do agreste, parte das pedras e das planícies desertas, simbolizando, desta forma, a agressividade do ramo que adota; o da prospecção de petróleo.


 


              


Petróleo é um dos pilares do capitalismo globalizante
            
            


Caso falássemos tão só deste aspecto de “Sangue Negro” deixaríamos o centro da discussão trazida por Sinclair e Anderson: o do capitalismo em sua fase superior, impulsionada pelo capital financeiro, o petróleo, o comércio, a alta tecnologia, as armas nucleares. Se o capital financeiro representa sua etapa neoliberal, globalizante, ele também tem a impulsioná-lo o domínio da tecnologia da exploração do petróleo e, principalmente, o controle das regiões do planeta onde estão suas maiores reservas. Não há como pensar no capitalismo sem os seus sustentáculos, e ele, o petróleo, matéria-prima indispensável à sobrevivência dos países imperialistas, Estados Unidos à frente, é um de seus pilares econômicos, representativo de um moderno estilo de vida e de um modo de produção. Sua gênese se insere na ação do filme, desde o início, mostrando-o ligado ao desenvolver do próprio Plainview.



            


Ambos –  Plainview  e petróleo – são imprevisíveis, agressivos, dotados de uma têmpera difícil de aceitarmos. Vale apenas o objetivo a ser alcançado, pelos métodos mais variados. Dentre eles o da manipulação, da esperteza e, sobretudo, da pressão direta impulsionada pelo dinheiro. O petróleo quando jorra o faz com uma violência aterrorizante. Começa por mostrar-se na superfície da terra, brilhante, viscoso, umedecendo mãos e desencadeando confrontos, muitas vezes violentos. Enquanto Plainview, que não mede esforços para encontrá-lo em cada uma de suas prospecções, torna-se parte dele, suas relações com os empobrecidos donos de terras terminam por se sobrepor às relações comerciais decentes. Numa das cenas que melhor ilustram esta ligação entre personagem e petróleo, Daniel desce ao poço agarrado a uma corda, sofre uma queda, quebra uma perna, mas não desiste de continuar sua busca para, enfim, chafurdar no óleo viscoso.


 


             


Plainview não é um sonhador



              
            


Não se trata de uma luta inglória, sem sentido ou carente do senso de oportunidade, guiada pelo instinto. Plainview sabe exatamente o que busca e o que pretende ter com a exploração do petróleo. Não se trata de um jogador, um sonhador, semelhante aos três personagens de “Tesouro de Sierra Madre”, que John Houston adaptou da novela de B. Traven, mas da tentativa de um explorador, que se organiza para ascender à camada superior da burguesia, através da prospecção de petróleo. No caso dos três homens que vão ao México para descobrir ouro e, desta forma, integrar-se ao sistema, não há outro objetivo: serem aceitos pela burguesia como um igual, dado ao acúmulo da riqueza, configurada na quantidade  de ouro conseguida, mesmo de maneira fortuita. Plainview, não, ele sabe que  deverá organizar a exploração do petróleo em grande escala, com grande capital, e nada que obtiver daí será fortuito. 


       
             


Tudo o que ele quer é acumular terras ao redor de seu poço de petróleo inicial. Compra uma área atrás da outra e vai explorando-as. Numa das vezes o bom negócio vem de forma inusitada por meio de um desconhecido, quando ainda construía seu império. O que o leva ao interior do Novo México, onde se apropria de uma área e, depois, das que estão próximas de seu terreno. Apenas uma lhe escapa: a de um velho fazendeiro, que troca a oferta em dólares pela adesão à sua igreja protestante. É nestas transações, em sua maioria desonestas; que ele percebe que lugar ocupa na hierarquia das empresas exploradoras de petróleo. Sua maior concorrente, a Standard Oil, o vê apenas como um aventureiro.


 


            


Filme mostra conflitos entre segmentos da burguesia


 


            
A maneira como os executivos da Standard Oil o tratam dão a medida dos conflitos entre os segmentos de classe burgueses, com os pequenos sendo engolidos pelos grandes. Plainview os enfrenta agressivamente, afinal ser aceito não é bem o seu caso; ele se declara competidor, alguém com capacidade de enfrentá-los em seus próprios termos. O conglomerado que a tudo compra é mostrado como predador, comportamento igual ao seu, que vampiriza os pequenos donos de terras. Neste embate entre ele e a Standard Oil, entre ele e os sitiantes, têm-se muito das contradições do capitalismo atual, em que se louva a canibalização de grandes ramos de negócios, através de fusões e aquisições sem analisar os prejuízos causados pelo surgimento de gigantescos monopólios, que irão controlar vastos segmentos da economia global. Trata-se, na verdade, do darwinismo econômico, gerado pela “livre concorrência”, com os gigantes engolindo os grandes, os médios os pequenos, que, encurralados, acabam  entregando suas propriedades.



               


Uma lição e tanto também sobre como o imperialismo suga a riqueza dos países do Terceiro Mundo, evitando que eles se desenvolvam; como faz Plainview com os sitiantes da área que ele se apropria no Novo México, este mesmo anexado brutalmente pelos EUA, no século 19. E, no caso de “Sangue Negro”, a metáfora sobre o Oriente Médio (leia-se Iraque) se encaixa perfeitamente, embora Anderson o camufle, usando a estética do western para fazê-lo. Aliás, este gênero se tem prestado a profundas análises de classe, ao contar histórias mostrando os rancheiros miúdos, com a ajuda do mocinho,  lutando contra os latifundiários, os gananciosos “desbravadores do oeste americano”. Principalmente no clássico de George Stevens, “Os Brutos Também Amam”, que trata da luta dos pequenos situantes contra o latifundiário que tenta se apropriar de suas terras.


 



              


“Sangue Negro” desmistifica a indústria do petróleo


              


A validade de “Sangue Negro” é por desmistificar uma indústria, a do petróleo, em sua gênese, cheia de negócios escusos. Contrapõe-se a outro clássico de George Stevens: “Assim Caminha a Humanidade”, que narra o conflito entre um grande criador de gado (Rock Hudson) e um Jovem descobridor de petróleo (James Dean), a partir do romance de Edna Ferber, “Giant”. O glamour do filme, dos personagens e dos atores, James Dean, Rock Hudson e Elizabeth Taylor, obscurece a seriedade do tema. Anderson consegue desglamourizar a indústria de petróleo e seus magnatas e o espaço que ocupam em vastas áreas de exploração. Plainview vive uma vida de monge, habitando uma tenda, em seus princípios de desbravador, depois um paupérrimo barraco. Não busca conforto, deita-se na táboa nua, sem cobertor ou colchão, ou mesmo qualquer adorno que o desvie de seus objetivos.
           


 


Nada lhe escapa, nem a perseguição que lhe empreende a Standard Oil e tampouco as possibilidades do negócio, cada vez mais amplas. Meticuloso, Anderson mostra cada etapa da descoberta de novos poços, as estruturas montadas para explorá-los e sua expansão para além de sua área original. Mas nada brota ao seu redor, critica Anderson, ao não mostrar o surgimento de povoados em volta dos campos de petróleo. Plainview é, assim, um predador, suga o que existe e nada oferece em troca, pois ao exaurir o óleo deixará tão só clareiras, estruturas de madeira plantadas no alto de morros e planícies, agora inóspitas, cheias de trabalhadores sem perspectiva alguma de sobrevivência e rancheiros empobrecidos. Uma visão nada auspiciosa para, notadamente o Oriente Médio, diante da possibilidade do fim das reservas de petróleo, deixando atrás de sim uma rica história e um futuro de miséria.


            


 


Embate entre capital e religião é instigante


            


Esta projeção apocalíptica do óleo viscoso, prestes a acontecer,  é assustadora, assim como o embate entre capital e religião que predomina em parte de “Sangue Negro”. Ali está não uma religião qualquer, mas a protestante, base do capitalismo, uma vez que liberou, ainda durante a Reforma (Lutero e Calvino), o Ocidente dos “Sete pecados Capitais”, isentando-o da usura e da cobrança de juros. A exploração do trabalho, a acumulação da riqueza e a expansão dos negócios nas viagens marítimas foram liberadas. O jovem pastor  Sunday (Paul Damo), que estava na origem da venda das terras de sua família, tenta, a todo o momento, tirar proveito da transação financeira, exigindo de Plainview uma doação para a sua Igreja. Plainview sempre a negligencia, porque na gênese de seus negócios não figura a participação da religião. Ele a admite apenas nos limites de seus negócios, assim mesmo quando sente que pode tirar proveito da situação. Nada mais.



             


O jovem pastor, no entanto, é despudorado, ignora as boas regras da catequese e encena milagres, a exemplo dos pastores eletrônicos atuais. Plainview zomba de suas grosseiras encenações e escapa às suas pressões. Ele, o jovem pastor vê-se colocado de lado, mas insiste. Usar a igreja para conquistar “doações” não lhe parece venal. Sabe da fraqueza de Plainview e consegue levá-lo à igreja e torná-lo adepto. Plainview, porém, se deixa manobrar e Sunday acha que triunfou. Desconhece, no entanto, a psicologia de sua “vítima”, interessada mais em conquistar outras terras e derrotar seu grande concorrente, a Standard Oil, do que se entregar aos preceitos religiosos. Não há simbiose alguma entre capital e religião, quando se trata de atingir os objetivos propostos. O capital sempre irá ignorá-la, dada à sua natureza: a de acumular cada vez mais riquezas, sem fazer qualquer caridade. E a religião, ao dar sustentáculo ao capital, isentando-o do pecado da usura (cobrança de juros, lucros exorbitantes), ela faz seu jogo e pode nada receber em troca.


 


            


Capital não tem religião tem interesses


            


 


O capital então não tem religião, tem interesses.  O embate final entre o jovem pastor Sunday e Plainview é chocante, pois simboliza a derrocada da religião. E numa época em que religião e negócios se interpenetram, ainda que mascarados pelo radicalismo, o espaço para que o capital a ignore expanda-se cada vez mais. Plainview, em estado de malignidade total, sem escrúpulo algum, humilha o jovem pastor dando a exata dimensão desta contradição. Ele o faz repetir seguidas vezes: ”Eu sou um falso profeta e Deus é uma superstição!”. ”Eu sou um falso profeta e Deus é uma superstição!”. E a violência se impõe como etapa final do embate entre ambos. Predomina, no entanto, o vazio, a solidão, a falta de objetivo na vida de Plainview. Ele quer apenas acumular, acrescentar novos espaços de poder em sua existência sem dela desfrutar. Tudo ao seu redor, móveis, dinheiro, poços de petróleo nada significa diante da frieza e do vazio que o rodeia.
              


 


O que poderia dar sentido a toda sua luta é o filho H.W. (Dillon Freasier), que o acompanha em suas andanças em busca de terras prenhes de petróleo. Um garoto silencioso, que ao emitir um som o faz pela metade, é seu ponto de equilíbrio. É ele que o torna humano; pertencente ao núcleo social que divide com outras pessoas. Uma mudança, porém, provocará profundas mutações em sua vida; ele não terá mais com quem dividir suas dúvidas, ainda que o garoto nada responda, ou quando emite sons é para concordar ou lhe apontar um novo poço de petróleo.Devido a isto, torna-se um ser brutal, capaz de atos criminosos. Falta-lhe, assim, a quem amar; a quem dedicar parte de si. Mas Plainview simboliza o capital e este não é dominado por sentimentos, sim por transações, lucros, investimentos, lucros. E o garoto, uma vez adulto (Russel Harvard), sente o peso da gênese predominante no capital. Inexiste espaço para a compaixão, o afeto e a divisão do que se construiu coletivamente.



               


Com estas abordagens, Anderson contribui para trazer à tona a obra de Upton Sinclair (Baltimore, 1878; Bound Brook, Nova Jersey, 1968), socialista de grande destaque na metade do século XX, quando dos embates acalorados do Socialismo na Europa e nos Estados Unidos. Dentre suas obras se destacam “A Selva”, 1906; “King Coal”, 1917, em que denuncia o capitalismo; “Os Dentes do Dragão”, 1942, integrante da série de 11 volumes, com o qual ganhou o Prêmio Pulitzer, o maior dos Estados Unidos. Ao assistir a “Sangue Negro” percebemos o quanto ele entendia da gênese do capital, mantendo-a atual e permitindo-nos fazer uma leitura não só da expansão do capitalismo, mas também do imperialismo nesta etapa da luta de classes. Plainview com sua ambição desmedida atesta o quanto o sistema, ao depender de sua visão desligada do coletivo e das relações de classe dos que o compõe, abre caminho para sua própria superação.


 


Sangue Negro” (“There Will Be Blood”). Drama. EUA. 2007. 158 minutos. Roteiro/Direção: Paul Thomas Anderson. Elenco: Daniel Day-Lewis, Paul Dano, John Kerr, Kevin J.OConnor.


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