Sérgio Sacani não entendeu (ou fingiu não entender) o que houve na UFSC
Divulgador científico faz reducionismo caricato de controvérsias científicas no campo da psicologia
Publicado 23/12/2024 09:08

Nesta semana o geofísico e divulgador científico Sérgio Sacani, responsável por projetos de grande alcance de público nas mídias digitais, como os canais Ciência sem Fim e Space Today, causou polêmica em uma participação que fez no podcast Redcast. Em uma conversa da qual também fazia parte o ex-deputado estadual Arthur do Val, mais conhecido como Mamãe Falei e ligado ao movimento direitista MBL, Sacani referiu-se a um evento do qual participou no mês de novembro, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de uma forma bastante pejorativa.
“Fomos eu, Eslen Delanogare e uma professora falar sobre mudanças climáticas. Os caras invadiram a mesa e falaram ‘essa mesa não representa ninguém’. Eles queriam um índio, uma trans, um viado e um negro. Aí eu falei brincando para o Eslen: se fantasia de índio aí.” [1]
O evento ao qual Sacani se refere dessa forma preconceituosa e grosseira foi a palestra de abertura da 21ª Semana de Ensino, Pesquisa, Extensão e Inovação (Sepex), no dia 6 de novembro. A mesa foi intitulada “Cosmos, Vida na Terra e Saúde Mental: Uma Viagem Científica”, realizada no campus de Florianópolis, que contou com a participação da professora Regina Rodrigues, coordenadora de Oceanografia da UFSC; de Eslen Delanogare, psicólogo, doutor em Neurociências pela UFSC e divulgador científico; e do próprio Sérgio Sacani.
Após a fala polêmica, a jornalista da UFSC, Amanda Miranda, foi à rede social X para desmentir Sacani:
“Sou jornalista da UFSC e cobri essa mesa. De fato, somos uma universidade inclusiva, aberta e plural, mas não trabalhamos com mentiras. Isso não aconteceu! Lamentável uma pessoa com visibilidade e influência lançar um factoide absurdo para achincalhar a universidade pública.“
Amanda postou vídeo com a exibição na íntegra daquela mesa, comprovando que não houve nenhum tipo de invasão. [2] Outro que veio a público desmentir o divulgador científico foi o secretário de comunicação da UFSC, responsável pela organização da Sepex 2024, Marcus Paulo Pessôa, que reafirmou que não houve invasão. “O que aconteceu foi que, antes do evento, quando as portas do auditório foram abertas, alguns estudantes foram lá muito respeitosamente e levaram faixas, com alguns protestos”.
Somando-se a Amanda Miranda e Marcus Pessôa, a própria UFSC emitiu uma nota afirmando não ter havido nenhuma invasão no evento, lamentando a fala de Sacani e reforçando que ele não mais será chamado para participar de nenhum evento na instituição:
“Lamentamos a forma desrespeitosa com que o Sr. Sérgio Sacani referiu-se à UFSC e seus estudantes em sua participação em podcast. Mesmo submetida a uma forte restrição orçamentária, a UFSC se empenhou em um enorme esforço institucional de valorização da Sepex, que teve na mesa de abertura seu evento de maior visibilidade, com cerca de 2.000 pessoas presentes, além de significativa audiência online e cobertura da imprensa local. No entanto, tal esforço parece não ter logrado êxito em demonstrar ao convidado toda a potência e diversidade da UFSC.
Reforçamos nosso compromisso com a diversidade, com o debate democrático de ideias, com a universidade pública e gratuita, e por isso anunciamos que o Sr. Sérgio Sacani não será mais convidado a participar de atividades organizadas pela Administração Central da UFSC na atual gestão.” [3]
Contrariado publicamente, em vez de se retratar, Sacani preferiu fazer um malabarismo semântico a respeito do conceito de “invasão”, para continuar sustentando que sim, teria havido uma invasão à mesa da qual participou. Em outra participação no mesmo Redcast, Sacani explica que a tal “invasão” teria sido a colocação de faixas de protesto feitas por estudantes da própria UFSC no palco onde haveria o evento pouco antes do evento começar.
“Uma pessoa que não era convidada subiu no palco e esticou a faixa lá”. Uma ideia controversa de invasão, já que as faixas foram colocadas pelos próprios estudantes da UFSC, que não precisam de convite para estar em um evento aberto da universidade na qual estudam. A própria instituição, responsável pelo espaço, não considera tal atitude como invasão, conforme consta na nota oficial.
O que realmente ocorreu?
Não vou aqui me alongar sobre o que é ou não é uma invasão. Embora particularmente eu entenda que Sérgio Sacani mentiu ao relatar o ocorrido na UFSC, basta-me reforçar que o que ele fez foi, no mínimo, uma distorção grosseira (em vários sentidos) do que de fato ocorreu e do que de fato estava sendo reivindicado pelos estudantes. Houve, sim, manifestações críticas a respeito da composição da mesa na qual o divulgador científico participou. Entretanto, essas manifestações, feitas por graduandos de psicologia da UFSC, foram mais complexas e mais técnicas do que Sacani tentou fazer parecer ao dizer que queriam “um índio e um viado na mesa”.
Em uma postagem feita no dia do evento, em 6 de novembro, na página de Instagram do “Centro Acadêmico Livre de Psicologia” da UFSC (@calpsi), os graduandos de psicologia escreveram suas críticas à composição daquela mesa. É possível observar que as reinvindicações dos estudantes não se assemelham a caricaturização grosseira apresentada por Sérgio Sacani. Segue a nota dos graduandos:
“Hoje, quarta-feira (06/11/2024), às 18h30, ocorrerá no auditório Garapuvu a mesa de abertura da 21ª SEPEX intitulada “Cosmos, vida na Terra e saúde mental”. Entretanto, nós, corpo discente do curso de Psicologia, nos questionamos: a abordagem que será feita acerca de saúde mental e ciência reflete a pluralidade de epistemologias, subjetividades e modos de vida? De quais lugares partem os palestrantes escolhidos? Cadê os trabalhadores da rede de atenção psicossocial nesta mesa? Por que não houve diálogo com o curso e com o departamento de Psicologia para a construção deste evento, em se tratando de uma temática que nos é tão particular? Quais foram os critérios adotados pela comissão científica do evento? Em um território onde está vigente a política de morte manicomial da internação compulsória, é a partir dessa perspectiva que escolhemos discutir?
Na apresentação do palestrante convidado para falar sobre saúde mental, a universidade exalta o seu “estilo de vida saudável” e o reconhecimento que possui baseado na quantidade de seguidores nas redes sociais. Além disso, apresenta uma visão predominantemente biologizante e individual sobre a saúde mental com um debate raso: ou você a tem, ou não, beirando a lógica da medicamentalização. Diante disso, nos questionamos: a correlação entre a produção de saúde mental e características/escolhas individuais reflete o conhecimento e as práticas que estamos produzindo e gostaríamos de produzir enquanto curso, ciência e profissão?
Baseado em todos esses questionamentos, manifestamos a nossa insatisfação com a maneira como este evento foi planejado, e comunicamos que realizaremos uma intervenção no auditório Guarapuvu, fixando os cartazes que estão sendo produzidos coletivamente pelos estudantes do curso no dia de hoje.”
Há muitas considerações que podemos fazer a respeito dessa manifestação dos estudantes. Em primeiro lugar, as críticas são direcionadas à escolha de Eslen Delanogare para a mesa. Não tinha a ver com Sacani. Os questionamentos envolvem controvérsias científicas e técnicas da área de psicologia, como quem teria mais legitimidade para falar sobre saúde mental; a ausência de um profissional de psicologia com experiência em atendimento psicossocial; a falta de diálogo com o curso de psicologia para a elaboração de evento cujo tema tem a ver com a área; um embate entre abordagens diferentes no campo da psicologia, já que, aparentemente, os estudantes têm uma, e o convidado, outra.
No texto dos graduandos, percebe-se ainda uma crítica às formas de validação de quem seria ou não especialista para falar sobre temas em tempos de mídias digitais, já que o texto critica a exaltação do número de seguidores do convidado a palestrante. Esse é um questionamento bastante pertinente atualmente para a divulgação científica e que diz respeito a toda a sociedade e esfera pública.
Há ainda uma crítica à figura do influenciador digital que “vende” qualidade de vida de forma individualista e descontextualizada das condições sociais predominantes para a maioria da população, pregando um estilo de vida ao qual poucos têm acesso.
Entretanto, nada disso significa que eu concorde plenamente com a posição dos graduandos de psicologia da UFSC ou ache que as críticas feitas pelos mesmos se apliquem perfeitamente à figura pública de Eslen Delanogare. A questão aqui é outra. A questão é que a manifestação crítica dos estudantes é muito mais técnica e complexa do que querer colocar “um índio e um viado” na mesa, como Sacani fez parecer. Ao reduzir a discussão a uma caricatura grosseira, Sacani passou por cima de controvérsias científicas complexas de uma área que ele não domina. E isso é um erro enorme para um divulgador científico.
Por que Sacani mentiu ou distorceu os fatos?
Por que Sacani fez isso? Ele mentiu? Embora eu esteja convencido que é possível classificar a fala de Sacani como mentira, basta-me enfatizar que houve, no mínimo, uma distorção grosseira dos fatos e da discussão ocorrida dentro da universidade a respeito de um evento acadêmico.
E por que essa distorção ocorreu? É possível que isso tenha a ver com a busca de Sérgio Sacani por uma modulação de seu discurso, para falar a língua da audiência que ele entende ter ou que busca ter. Não é possível analisar a fala do divulgador científico sem levar em conta seus interlocutores e o canal no qual ele estava falando. Como dito anteriormente, Mamãe Falei, ligado à direita, era um dos integrantes da conversa, realizada no Redcast, um canal de destaque dentro da comunidade red pill, que também possui inclinação à direita.
Os círculos de direita e extrema direita têm como parte do repertório político ataques às universidades, principalmente às públicas. A guerra cultural virou uma importante ferramenta retórica desses grupos. Dentro dessa guerra cultural está incluída uma visão estereotipada das universidades enquanto antros de militância marxista, de esquerda identitária ou coisas do tipo. Uma estereotipagem normalmente muito rasa.
Não significa que as universidades vez por outra não mereçam críticas nesse sentido. Basta lembrarmos da performance intitulada “Educando com o cu”, da pesquisadora que mostrou as nádegas em evento da Universidade Federal do Maranhão. Eventualmente, episódios lamentáveis como esse ocorrem nas universidades. Logo, não é necessário criar nenhuma fanfic ou factoide como fez Sérgio Sacani. É importante criticar, mas mantendo a pertinência aos fatos.
Sacani conhece o repertório da bolha para a qual se direciona. Ele sabe da visão estereotipada da direita e extrema direita sobre as universidades. Ao resumir o que houve na UFSC a quererem um viado, um índio, uma trans e um negro em uma mesa de abertura, o divulgador científico busca conexão com o repertório que essa bolha já possui e gosta de lançar mão sempre que pode (e sempre que não pode, também).
Não deixa de ser curioso que Sacani reclame de invasão em universidade em uma mesa com o Mamãe Falei, este sim, um recorrente invasor de evento acadêmico, que já invadiu um evento fantasiado de vagina, em uma clara atitude de provocação às mulheres participantes. Aí pode invadir, né?
Dizem que não se deve jogar xadrez com pombo, porque ele espalha as peças, suja o tabuleiro e fica impossível jogar. Neste caso, o pombo foi o Sacani. Com todo respeito que tenho por seu bom trabalho enquanto divulgador científico, ao criar uma caricaturização grosseira de um debate complexo, ele apagou a complexidade do debate, tornou a discussão séria algo impossível e prestou um enorme desserviço.
Referências:
[1] https://www.instagram.com/pragmatismopolitico/reel/DDxUT0ch6lg/