Sinvaldo, o campesino
Às vezes, noite alta, Sinvaldo volta a minha memória com aquele sorriso e voz rouca, inquebrantável, incentivando-me a entrar nas casas simples, nas choças, nas vidas vividas no mato, andar a cavalo ou a pé, talvez com Raimundo Lagoa, talvez com Zé da Onça, talvez com Peixinho ou ter um dedo de prosa com Vanú.
Publicado 24/01/2011 22:14
Buscava, Sinvaldo, os vestígios da luta popular no sul do Pará.
Olhando as estrelas no Araguaia reportava-se das suas andanças com Nunes, com Nelito, com Zé Carlos, com Duda, com Piauí, com Fátima, com Sônia. Seus olhos de peão do mato, de homem duro da roça aguavam-se com a lembrança de seu mais antigo e casto amor: Cristina.
– Moço de deus, Cristina era a ‘flor da mata’! Era a boniteza em pessoa. Quando eu saí, com a mulher e o primeiro filho, pelo Taurizinho, eu a convidei para sair também, dizendo-lhe: ‘vamos embora, Cristina, que a cobra vai fumá!’.
– E ela me disse: ‘moço, meu lugar é aqui, meu lugar é com meus companheiros, lutando para livrar o país dessa ditadura fascista! Vai, companheiro, tira a tua mulher e teu filho daqui. No futuro, não te esqueças de contar a nossa história’.
Também amei Cristina no amor de Sinvaldo.
No fundo das redes camponesas toquei o coração da guerrilheira com mãos de centelha e na substância metálica da lua fui mata em ventania, protesto em liberdade, igarapés de águas minerais.
Altivo como as noites araguaicas meus pés firmaram-se no chão da luta popular.
Nossa convivência fora intensa e de ensinamentos mútuos.
Afinal, não é assim que deve ser a relação entre os homens?
No sol amazônico cavalgávamos pelo Caçador, buscando os relatos que nos indicassem o destino dos combatentes, cruzando as várias informações, declamando poemas guerrilheiros, ascultando os sentimentos do povo, comendo o que nos ofereciam e verdade seja dita: havia sempre uma galinha caipira para saciar as nossas fomes andarilhas e uma cama ou rede para aplacar o cansaço de longas jornadas.
Na madrugada profunda do tempo da guerra, dizia-me Sinvaldo, podia-se ouvir o barulho das metralhas e a mata incendiando-se.
Foi na Brasil-Espanha que Fátima fora alvejada nas pernas depois que sua ‘lurdinha’ travou na hora do chafurdo com uma tropa. E Sinvaldo gesticulava, procurando imitar a angústia da combatente no momento do fogo. Ferida, foi levada para as Oito Barracas no lombo de um burro e nos Croá é morta e enterrada a mando do Major Curió.
Depois de nossas andanças por aqueles sertões, orientados por um ex-mateiro do Exército, o ‘nego’ Olimpio, ficamos sabendo que dois dias depois, numa manhã perdida de Setembro de 1996, o Major Curió aportou na casa de nosso informante oferecendo-lhe dinheiro ou terras para que seu antigo comandado não passasse informações para os comunas.
Daqui, de minhas lembranças, acarinho a profunda amizade estabelecida com aquele lavrador que não largava o chapéu se recusava a raspar o bigode.
Acometido por um câncer no estomago, deixou-nos há alguns anos e mesmo na fase terminal da enfermidade procurava manter o compromisso estabelecido com Cristina, a ‘flor da mata’, à beira do Taurizinho: de dar vida às vidas generosas daqueles que no Araguaia tombaram.
Mantendo viva a memória araguaiana, aquele destemido e corajoso campesino buscava compreender os feitos de sua classe.
A inexorável e heróica luta dos camponeses em nosso país.