“Tarata”: Preço do alheamento

Em seu filme, diretor peruano Fabrizio Aguilar discute o comportamento da classe média diante dos confrontos político-ideológicos em seu país

           Existe um cinema latinoamericano que raramente chega ao espectador nacional. Um cinema mais que autoral, militante, como se assistiu no painel “Imagens dos Povos – VI Mostra Internacional Audiovisual, VI Seminário Internacional Audiovisual”, realizado de 17 a 23 de setembro, em Belo Horizonte, pela T´AI Criação e Produção. Durante seis dias pôde-se ver 80 filmes, entre curtas e longas de ficção e documentário. Dentre eles, “Tarata”, do peruano Fabrízio Aguilar, que trata do comportamento da classe média diante dos confrontos entre o movimento de esquerda e os sucessivos governos direitistas e a burguesia de seu país, aliados dos EUA.

            Centrado na família Valdívia, o filme mostra as tentativas de Cláudia (Isela Valcárcel) para preservar a unidade familiar, protegendo os filhos adolescentes Sofia e Elias, pressionando o marido Daniel (Miguel Iza), contador na Universidade de Lima, a mudar de emprego, ignorando as bombas que caem ao seu redor. Enquanto isto sonha em montar um salão de beleza em parceria com a amiga Gabriela.

          Com esta abordagem Aguilar e sua roteirista Sol Perez tornam o filme um drama político mais pela trama, pelo andamento equilibrado e pelas imagens poderosas. Cada um dos personagens age segundo a visão que lhe provoca a luta, em princípio distante dele. Inclusive de Rosa, empregada dos Valdívia, maltratada por Cláudia, cujo autoritarismo beira o sadismo. 

              A trama então se desdobra em três vertentes: o alheamento da classe média ao conflito entre esquerda e burguesia, sua influencia na vida dos Valdivia e a luta de classe subreptícia entre Cláudia e Rosa. Na primeira vertente, Aguilar trata da cobiça doentia de Cláudia, sua vontade de erguer-se para além da classe média. Oportunidade vista na sociedade com Gabriela e no saque que empreende no escritório onde uma bomba explode.

             Na segunda vertente, Aguilar trata mais da família. Da briga de Cláudia com Daniel para que mudem de status e o modo como Elias apreende os efeitos das bombas; como são montadas, os locais onde explodem e, sobretudo, como evitá-las. Elias oscila entre a realidade e a fantasia. As bombas e suas explosões a um só tempo o fascinam e o amedrontam a ponto de ele criar um manual para proteger-se delas. 

           Reação diferente da irmã Sofia que se fecha solitária no telhado, fumando, sonhando em evadir-se de Lima para o interior do país, ignorando que lá (e não só lá) se trava a luta de guerrilha do Sendero Luminoso. O mundo à volta deles, Elias e Sofia, é uma tortura piorada pela tirania da mãe, Cláudia, que procura escapar ao caos, apenas com gritos, ordens e insegurança. Sofia é assim a única que reage aos destemperos da mãe, ainda que sofra por isto.

 

                  Fala-se muitas línguas
                  nas Américas

                   Mas é Daniel que dá o tom ao filme. Através dele, Aguilar chega a terceira vertente do filme. Daniel teme mais as reações da mulher, do que as ações das tropas conservadoras. Palavras de ordem, slogans, pichações multiplicadas por Lima lhe parecem um enigma. Tenta decifrá-los. Cláudia o martiriza por isto; ele não cede, é seu único espaço. No entanto, ocorre algo à sua volta que ele não capta até enredar-se em tarefas para as quais não está preparado.

                   Daniel, ainda que pressionado por Cláudia, procura entender o drama vivido por Rosa. Maltratada por sua mulher, ela tem no filho Roger, estudante de medicina, seu maior encanto. Até que Roger é tragado para o centro do confronto. Daniel pende, devido a isto, entre a covardia e a sobrevivência. Cláudia, que simboliza mais a classe média silenciosa que ele, torna a vida de Rosa mais difícil. Transforma a relação entre ambas em luta de classe e temor da ação das tropas de segurança. E o filme ganha com isto outro caráter: o do modo como a classe média e o proletariado tratam de seu envolvimento no conflito político-ideológico cotidiano.

                   Enquanto Cláudia busca a influência da burguesia para livrar seu companheiro, Rosa tem de perambular de cadeia em cadeia, sem notícias do filho. Nem assim, Cláudia lhe é solidária. Procura manter-se acima da ex-empregada. Um achado e tanto de Aguilar, porquanto poderia tornar a luta de classe uma questão de simples solidariedade, equiparando as duas mulheres. Cláudia quer, a todo custo, apenas salvar o que lhe é caro, não vê que a repressão atinge-as indistintamente. Ambas são vítimas, porém Cláudia faz sua opção de classe.

                     Aguilar consegue, deste modo, tornar seu filme uma contribuição ao entendimento do comportamento da classe média em meio aos conflitos político-ideológicos latinoamericanos. E o espectador percebe que existe outro tipo de cinema, que embora sufocado pelo imperialismo audiovisual dos EUA, dá conta de sua história. Entende, além disso, que inexiste democracia cultural, circulação e acesso ao produto latinoamericano para que não só Brasil se veja mais, como também seus vizinhos se mostrem mais. Afinal, muitas línguas se falam nas Américas. Não só o inglês.

Tarata”. Drama. Peru. 2009.177 minutos. Roteiro: Sol Perez, Fabrízio Aguilar. Direção: Fabrízio Aguilar. Elenco: Isela Valcárcel, Miguel Iza, Ricardo Ota, Silvana Canõte.

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