Tempo bicudo para voo de tucano

Pássaro colorido de grande bico e olhos intrigantes, tucano é ave bizarra de voo curto conhecido no lendário indígena pela vaidade maior que o bico e juízo muito menor que as asas curtas. Mesmo assim com defeitos de natureza tucano açu é pássaro misterioso e cobiçado para enfeite de maloca na aldeia. Cobiçado pelas penas como ornamento, depois de arara e papagaio, a fim de confeccionar cocar de pajé, enfeitar a estética e a fé selvagem.

Na família existe ainda a espécie dos araçaris, primos pobres dos tucanos açus de asa azul e peito amarelo, aqueles outros tem asas esverdeadas e peito encarnado. Vivem os araçaris em bandos turbulentos e predadores. Os índios acham que no começo do mundo os bichos foram gente. No caso dos tucanos açus, por exemplo, pode-se crer que algum dia foram eles bacharéis neoliberais e araçaris pelegos esquerdistas tão barulhentos quanto nocivos à real melhoria de vida da companheirada desempregada.

Com tais predicados é claro que os índios, naturalistas por excelência; estudaram os tucanos dentre os animais mais procurados como xerimbabos (animais domésticos). No caso de bichos encantados só pajé pode domesticar alguns ou ter acordo com outros, mas bichos naturais assim podem ser caçados para alimentação ou arte ornamental. Eis o que me contou certa vez um amigo índio do Rupununi (República Cooperativista da Guiana), velho partidário da independência do país ao lado de Cheddi Jagan. Em luta interna o partido de Jagan viu-se afastado do poder e alguns partidários tendo pegado em armas contra o partido de Forbes Burnham pediram asilo à Venezuela, entre fins dos anos de 1960 e começos da década de 1970, mais ou menos.

Em 1977 conheci “Hendrick Wapyxana” (chamemô-lo assim, pois de qualquer maneira o verdadeiro nome de um índio só seus parentes mais próximos e o pajé da aldeia hão de saber). O nome do indivíduo é sinal secreto de identidade com que o nativo se reconhece e é reconhecido pelos seus. Meu camarada guianense, no caso, dentre outros ensinamentos úteis à “lei da selva” ensinou-me um meio de capturar tucano. Difundir o método pode ser útil, inclusive, na mudança climática. Nunca se sabe o que vem depois da bonança… Os “índios” da democracia popular são os últimos que falam e os primeiros que apanham. O golpe de Honduras e a “solução” prevista é senha que deixa afroameríndio de orelha em pé do Alasca até a Patagonia, prelúdio de chuvas e trovoadas.

Pegar tucano açu pelo pé pode ter dom de sossegar baderna de araçaris. A fabulosa fábula dos tucanos tem ninho em todos continentes: enquanto os mais vistosos se empoleiram solitários sobre altos galhos, os primos aos milhares se espalham a fazer sujeiras mil. Claro que grãos feitores e caramurus são um desastre quando se metem a governar seja lá o que for. Mas os índios com sua milenar sabedoria sabem pegar os bichos sem matar nem aleijar, exceto quando é caso de fome. Sem mais delongas, vamos ao método Wapyxana para pegar tucano a frio.

O negócio é o seguinte; quando carece extrair penas e plumas para festa (dizem que o imperador do Brazil, Pedro II; houve manto real com plumas de tucano do peito amarelo; quer dizer o tucanato é de genealogia imperial) vai à caça caçador experimentado. O caçador não vai com arma à floresta, mas ao rio com canoa, remo e tambor (isto mesmo, um grande tambor). De bubuia, no meio do rio espera pela embiara. Não é de hoje que tucanos tem costume de ficar no alto do pau ou muro a ver como param as modas.

É da natureza dos tucanos parca autonomia de voo (a Embraer não foi bem informada quando deu nome de Tucano a seus aviões, melhor homenagear o povo Tukano pois aí a história é outra). O bicho empenado no alto da floresta filosofa uma eternidade sobre o ser e não ser das coisas. Mas, só bebe água quando chove. Os índios sabem quando a seca demora pelo cantar de tucano, dizem eles, a clamar dias inteiros pela chuva… É admirável a fé dos tucanos pela volta das chuvas. Outro amigo índio versado em tucanologia me ensinou que tucanos e araçaris nunca fazem cagada como bichos ou gentes normais. Tucanos e araçaris ao se alimentar de fruto de palmeiras regurgitam as sementes. Acho por aí que não é boa idéia extinguir a espécie, já que na mudança climática pode ser útil ao verde. Se tamanduá serve a controlar formigueiro e morcegos são os caras da biodiversidade há a tucanada de prestar algum serviço afinal de contas.

Disto os índios entendem bem. Assim o caçador gasta tempo no meio do rio… Acompanhado unicamente (quase me esquecia de dizer) do tambor, daqueles grandes como zabumba, que dariam inveja ao Oludum. O tucano alvo da cobiça do selvagem aparece pela margem e haja a subir, de galho em galho, até aos píncaros da floresta. O índio matreiro sabe que a presa vai ter que arranjar altura e coragem para atravessar o rio… Longa e premeditada espera como plano de reforma agrária. Se o índio fosse companheiro de primeiro mandato, já teria voltado de mãos abanando. Enfim, lá vem o cocar mais novo do pajé voando pelo ar!

As asas curtas aceleram ao máximo, mas o bico pesa… Uma paradinha para tomar fôlego e tome queda, o bicho vem perdendo altura. O índio na canoa boiando sobre as águas larga o remo e pega a vaqueta do tambor. O tucano vai desenhando no ar a curva de nível que, se houver chance, terminará num galho de árvore bem baixo no outro lado do rio. Então, quando o tucano chega ao meio da viagem, o índio malvado mete porrada ao tambor. O estrondo espanta a ave e a indecisão lhe é fatal para o imprevisto mergulho em água fria. Pesa-lhe a mão do selvagem, sem a qual o danado morreria afogado. Há que se consolar, afinal, o tucano domesticado e depenado para enfeite do sagrado, incorporado no pajé em transe como ave encantada. Acautelem-se os bacharéis de penacho pois os tempos de mudança climática estão bicudos.

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