“Todas as Canções de Amor” – Reflexos da vida a dois

A relação de dois casais de diferentes idades e suas complexidades são abordadas neste drama pela cineasta anglo-brasileira Joana Mariani .

Nada de fechar a relação amorosa entre dois casais num quadrilátero onde tudo transcorre de forma a dar ao espectador a ideia de que o casamento depende da submissão de um ao outro. Ainda que haja certos choques, algum cansaço e a convivência enverede para a mesmice. Neste seu “Todas as Canções de Amor”, a cineasta anglo-brasileira Joana Mariani (1975) foge a esta armadilha dramatúrgica ao traçar um paralelo entre os jovens recém-casados, ainda a se conhecer, e outro já maduro, cujo cotidiano se tornou um fardo para ambos e mal se suportam.

A partir do roteiro do quarteto Juliana Araripe, Nina Crintzs, Roberto Vitorino e Vera Egito, Mariani cria uma conexão entre os dois casais através das músicas românticas gravadas em fita K7. Mais do que identificar a jovem Ana (Marina Ruy Barbosa) com as canções selecionadas por Clarisse (Luíza Mariani), em cujo apartamento ela mora agora, Mariani vai, aos poucos, mostrando o estado psicológico de ambas e o quanto se identificam. Enquanto tudo é novo para a recém-casada, a desconhecida vive angustiada, pois nada mais espera de seu casamento de 20 anos.

Ao trabalhar com estas dualidades narrativas, Mariani e seu quarteto de roteiristas fecham o casal Ana/Chico (Bruno Gagliasso), num ambiente bem iluminado, e Clarisse e seu companheiro Daniel (Júlio Andrade) numa comprida e escura sala de seu novo apartamento. Estes climas traduzem o estágio em que se encontra as relações dos dois casais. Ana, escritora, encontra material nas fitas K7 para se ocupar, deixando de lado o que dela espera Chico. Dono de um restaurante, ele ainda cuida do apartamento quando chega. Reclama, mas a paixão ajuda-o a superar a dupla carga.

Clarisse e Daniel mal trocam frases

A câmera de Mariani enquadra-os em grandes planos bem estruturados. Eles, além de jovens, encontram tempo e se amam. Enquanto Clarisse e Daniel são focados à distância, mergulhados em tons escuros e raramente um perto do outro. Já não encontram tempo para o relacionamento amoroso. Mal trocam algumas frases. São as canções românticas que matizam o clima a envolver os dois casais, como Gal Costa (1945), em Baby (1968) de Caetano Veloso (1942); Cartola (1908/1980), em O Mundo é um Moinho, e o franco-belga Jacques Brel (1929/1978), compositor e intérprete de Ne me quite pa.

Em cada sequência Mariani expõe o nível do relacionamento tanto do casal Ana/Chico quanto de Clarisse/Daniel. Se os dois jovens às vezes trocam farpas, elas não evoluem para ofensa. Logo são superadas por um carinho ou deixam o outro sossegado. O amor ainda abre largo espaço para a evolução do relacionamento com mútuo respeito. Ao contrário de Clarisse e Daniel. Ela se tornou angustiada, magoada, ríspida, deixando-o na sala com o vilão e saindo para a noite com as amigas. Mal lhe diz aonde vai ec om quem vai sair. Ele, sim, deve adivinhar. Tornou-se frio, entregue à música e ao desassossego.

Se estas sequências constroem os contrapontos narrativos, ao espectador cabe atentar para as construções de Mariani. Ela estrutura uma narrativa sobre as relações conjugais modernas. Ana e Chico articulam seu cotidiano de acordo com o tempo que dedicam ao trabalho, à casa e um ao outro. Inexiste hierarquia, na qual Chico é o chefe do casal. Nenhum deles se sobrepõe ao companheiro. É a completude da família ainda está por vir. Numa elucidativa conversa, eles se referem a ter filho, mas não avançam. Não é algo impositivo. Ana não tem que se preocupar em ser mãe.

Mariani configura o fim da subserviência

Como a construção dramática é feita por dualidades, Mariani trata do mesmo tema nas sequências referenciais com Clarisse e Daniel. Ela que, num de seus repentes, deixara claro sua tendência ao rompimento com ele, revela que nunca quis ter filhos. Trata-se de uma decisão sua, caso ele quisesse deveria convencê-la ou retomar a relação em outro nível. E alguém deveria ceder. Não há porque lançar a culpa sobre o outro. A relação é a dois. Esta uma das grandes conquistas da luta pela emancipação da mulher, configurada no fim da subalternidade e do doente patriarcado.

É na terceira parte deste “Todas as Canções de Amor” que Mariani reforça a dualidade narrativa. As sequências dos casais Ana/Chico e Clarisse/Daniel evoluem paralelamente a completar um ao outro. E desta forma, um torna-se o reflexo do outro ao ocupar o mesmo espaço da ação. Isto ocorre na sequência do bar onde Daniel faz um show. E eles ficam frente a frente, mas sequer imaginam que se espelham mutuamente. Trata-se da repetição de costumes e imposições criadas pelas estruturas do sistema burguês, a exigir infinda repetição que os novos casais devem quebrar. Caso contrário, repetirão os mesmos erros por não se insurgir.

Estes paralelismos são usados por Mariani e Letícia Giffoni, sua montadora, para contextualizar, inclusive, o cotidiano de Chico e Daniel ao fazer caminhadas por um viaduto da cidade de São Paulo. Elas chegam a alternar idênticas situações vividas por eles ao mesmo instante. Um parece ser hoje o que o outro será amanhã. São as lições da montagem dialética do gênio russo Sergei Eisenstein (1898/1948), em “ Encouraçado Potenkin” (1925). Estão no mesmo cenário, perto um do outro, mas refletem o que podem acontecer o jovem casal amanhã. É um instante de grande cinema, construção rara nos dias correntes, onde tudo se confunde.

Mulher reforça a luta do homem

Toda esta estruturação, por vezes sutil, evolui para o que a mulher conquistou. O homem e a mulher são seres mutáveis, construção histórica da edificação de uma sociedade livre e democrática. Clarisse, no fundo, expõe ao longo da narrativa suas carências e sua capacidade de se redimir. Mas também a de Daniel de não se fechar entregue ao violão e suas composições. Na convivência a dois, um não se anula para a satisfação do outro. Cada um mantém suas motivações, sonhos e interesses e deve ajudar o outro a realizá-los. É a forma de se completarem. Um é dois.

Este brilhante “Todas as Canções de Amor”, lançado em meio ao articulado flagelo em gestação de a mulher retroceder à subserviência ditada pelo medieval patriarcado, tendo o homem como “chefe de família”, mostra que, ao se organizar, a mulher reforça sua capacidade de ser livre. É a conquista que retirou do homem o brutal encargo de manter a família num sistema, como o capitalista, no qual ele é tão subjugado quanto ela. E os dois, sem qualquer subserviência podem se libertar e ter tempo para refletir sobre a opressão e se lançar em busca da liberdade plena.

Isto fica evidente na bem estrutura sequência na qual Clarisse começa distante, atordoada, sofrida, sem onde se apoiar, até receber de Daniel a mão que lhe faltava. O que reforça a ideia de que no convívio do casal conta mais quando dois realmente são dois e não apenas um. A câmera de Mariani e de seu diretor de fotografia Gustavo Hadba enquadra-os de longe e vai se aproximando, mostrando-a não só liberada, mas também ele, pois a tem de novo. Se este é o reflexo do que serão Ana e Chico no futuro é uma bela construção dramático-narrativa. Válida, principalmente, pela contida e interiorizada interpretação da atriz Luiza Mariani, como a sofrida e carente Clarisse. Ela mostra que sempre há caminhos a desvendar.

Todas as canções de Amor. Drama. Brasil. 2018.92 minutos. Trilha sonora: Maria Gadú. Montagem: Letícia Giffoni. Fotografia: Gustavo Hadba. Roteiro: Juliana Araripe, Nina Crintzs, Roberto Vitorino e Vera Egito. Direção: Joana Mariani. Elenco: Mariana Ruy Barbosa, Bruno Gagliasso, Júlio Andrade e Luíza Mariani.

Assista o trailer:

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor