‘Tua morte será vingada!’

Já passavam das vinte e uma horas quando, apressadamente, Expedito Ribeiro de Souza vindo de uma reunião sindical, passou pelo amigo Chico, o vaqueiro, cumprimentado-o com aqueles imensos olhos brilhantes e seguiu, diante da noite infame, para sua modesta casa no bairro de Vila Nova, na pequeníssima Rio Maria (PA).

Na residência de taipa, a mãe, Maria Lopes e a irmã, Izabel, rezavam um terço quando espocaram – solapando com a monotonia chuvosa de três de fevereiro de mil novecentos e noventa e um – os tiros que, ao longe, retiraram a vida daquele preto pobre, mineiro de Frei Inocêncio.

Expedito, como muitos de sua terra natal, expulsos pela expansão do latifúndio nas Minas Gerais passa, antes de chegar ao Pará em meados da década de setenta, pela Bahia e Espírito Santo. Mas, naqueles dias, as promessas de Garrastazu Médici anunciavam fartura de terras na Amazônia e, como milhares de retirantes, seus iguais, percorreram os caminhos centrais de um país profundo e desigual, numa via-crúcis em busca de ter um palmo de chão para dar o sustento da família.

As matas sombrias recebiam, portanto, as gentes modestas vindas principalmente do Goiás, Maranhão e Minas, mas, ao invés do acesso tranqüilo a terra – já toda fatiada pelos poderosos – a humanidade daqueles lavradores só encontrou os arames, a fome, a floresta ancestral, as doenças, a pistolagem, a polícia e a justiça do lado dos ricos.

Expedito não teve tempo, diante da morte, de esboçar qualquer reação porque naquela fração do tempo, terríveis segundos, três tiros acertaram-lhe num piscar de olhos que fez com que aquele homem, de quarenta e três anos, pai de nove filhos, principal dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria tombasse agonizando em derradeiro sopro de vida. Os estampidos fizeram piscar as luzes alumiadas pelos postes.

O autor do crime, um homem branco, jovem, de barba e bigode, trajando camisa clara e folgada, calça escura e um chapéu preto com listas claras fora visto, correndo, com um trinta e oito na mão rumando para local ignorado. Logo, soube-se que o autor dos disparos era o pistoleiro José Serafim Sales, de 19 anos, conhecido, também, entre os matadores de aluguel pela alcunha de ‘Barreirito’. Há muito que aquele pistoleiro foi para o inferno e deve estar lá até hoje, entre amigos, como cupincha do capeta.

Ocorre que, nos funerais, José Serafim Sales é reconhecido por testemunhas próximo à igreja. Havia trocado apenas de camisa e estava, com outro comparsa, assistindo ao enterro do sindicalista assassinado, seguramente, intentando novos crimes porque outros marcados para morrer estavam presentes no ato, como a então Deputada Federal do Partido Comunista do Brasil no Pará, Socorro Gomes, Orlando Canuto, Carlos Cabral, Neuton Miranda e o Padre Ricardo Rezende da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Reconhecido pelos companheiros do morto é denunciado ao delegado da cidade que não demonstrou interesse algum em prender o bandido que fez com que, aquele jagunço, em liberdade, pudesse, em zombaria, participar de tão pesaroso evento fúnebre. Dias depois ‘Barreirito’ é preso por uma equipe de policiais vindos de Belém e confessa o crime, o mandante, Jerônimo Alves do Amorim e o valor do serviço, aproximadamente Cr$ 835,00.

A atitude da política de segurança pública no sul paraense, sempre ao lado dos poderosos, se confirma na medida em que apenas para se concluir o inquérito do assassinato de outro sindicalista, João Canuto, ocorrido em dezembro de 1985, a Delegacia de Polícia de Rio Maria levou inacreditáveis e tormentosos dezoito anos.

O assassinato de Expedito Ribeiro de Souza ganharia a primeira página do ‘The New York Times’ e do ‘The Washington Post’, além dos grandes jornais de circulação do Brasil.

A anunciada liquidação física do então presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Maria, além das denúncias realizadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B) foi feita, também, para o próprio Ministro da Justiça da época, Bernardo Cabral.

No documento de abril de 1990, o líder do PC do B na Câmara dos Deputados, Haroldo Lima, faz informar que: ‘(…) Expedito Ribeiro de Souza, encontra-se ameaçado de morte. A notícia, de ampla divulgação na região, reporta-se a uma macabra “decisão” tomada em uma reunião de latifundiários e seus prepostos na região, já tendo sido inclusive assediado por pistoleiros. Tal situação não pode ser minimizada face aos precedentes que ocorreram naquele Estado em situações assemelhadas. Havia uma “lista de marcados para morrer” no Estado do Pará que fora denunciada pelo Deputado Paulo Fonteles na Assembléia Legislativa do Pará em 1985; nela estavam incluídos os nomes de várias lideranças sindicais, comunitárias e parlamentares. Em 18 de dezembro de 1985, o então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, e Membro do PCdoB, João Canuto, após ter seu nome incluído na lista “dos condenados à morte”, foi assassinado barbaramente por pistoleiros. Em 11 de junho de 1987, Paulo Fonteles foi covardemente assassinado em um posto de gasolina, próximo à Belém. Fonteles, dirigente do PC do B, advogado de trabalhadores rurais e posseiros e defensor da Reforma Agrária, foi vítima da mesma trama que denunciara na Assembléia Legislativa Estadual quando das ameaças a João Canuto. Da mesma “lista” constava o seu nome, e do deputado João Batista, do PSB. Em 6 de dezembro de 1988, em Belém, e a 500 metros da residência do governador, é morto a tiros o deputado João Batista (…)’.

A sucessão das mortes anunciadas e confirmadas é um traço comum da vida da Amazônia, pois, aqui, a impunidade é regra. Os que sobreviveram têm muitas histórias a contar e dentre elas, talvez a principal, está na revolta em saber que o judiciário – o do Pará está entre os piores do país – tem lado e, neste caso, ela nunca está a servir aos que mais dela necessitam, ou seja, o povo pobre e trabalhador.

Expedito foi assassinado porque não apenas pensava como os seus, mas porque, deliberadamente, lutava por eles, revelando alto nível ideológico. Tal possibilidade só pode ser alcançada pela aguda visão de classe e de que a justeza da política deve ser desfraldada nas grandes e pequenas lutas, sempre na perspectiva da vida futura, do homem novo e da sociedade socialista.

Pouca gente sabe, mas aquele preto se tornou comunista para manter viva a memória dos que, no Araguaia, combateram em armas o regime opressor instalado em 1964. E se revelou poeta e cordelista quando, em 1980, sentiu a lancinante dor de ver um dos seus companheiros, um dos melhores, Raimundo Ferreira Lima, o ‘Gringo’, assassinado pelas mesmas balas que lhe apagariam os olhos pouco mais de dez anos depois.

Dizem – desconfio – que os poetas costumam ser doces, mas é inato, aos que versejam ir ao fundo dos homens, revelando-lhes as próprias origens. Não causa espanto que os violentos tomem os poetas como alvos fundamentais e neste caso serve o exemplo de Frederico Garcia Lorca, um sertanejo andaluz, que sucumbiu em fuzilarias à ascensão fascista na Espanha, nos terríveis tempos do general Francisco Franco.

Nos rincões da Amazônia, em geral desconhecido e alijado dos processos mais gerais de desenvolvimento nacional, a poesia não poderá reinar pacificamente como ensinam, na atualidade, os versos do dirigente paraense do Movimento dos Sem Terra (MST), Charles Trocate, também há muito vivendo sob o cutelo das ameaças contra a sua integridade física.

Mesmo que exijam dos criadores temas idílicos ou pastoris – a grande burguesia assim o faz com seus punhais nada adocicados – a poesia têm a tarefa de se armar e se acautelar, como faziam os posseiros na ‘Guerra dos Perdidos’ de São Geraldo do Araguaia (PA) na segunda metade da década de 70. Quem conheceu o ‘seu’ Otacílio sabe do que estou falando, pois aquele velho, além de dirigente militar dos lavradores trazia consigo, na aurora de suas convicções, toda a poesia das Ligas Camponesas e a altiva figura versejada de Francisco Julião, eterno herói da luta pela terra no Brasil.

As pessoas do povo – como Expedito – se interessam pelos versos porque as grandes questões filosóficas da existência humana os levam, pelas complexas mãos do pensamento, a transcender a prosaica – isto é, sem poesia – comunicação do cotidiano e nenhum tema é mais filosófico do que a morte e a vida, irmãs siamesas e salvaguardas do fazer poético.

A poesia daquele preto – um dos homens mais generosos que conheci na vida – apesar de desconhecida permanece no ar e nada tem haver com os dândis das avenidas formais do verso, quase sempre interessados em mitigar as tragédias humanas.

A voz daquele poeta, projetada no tempo, têm as digitais do sangue derramado dos seus iguais, a revelação de que as autoridades governamentais e do judiciário são sempre cúmplices com as mortes anunciadas, a denúncia do latifúndio e do capital, a dura vida da roça, as matas que gritam em queimadas, a premonição da cova e uma imbatível consciência de classe.

Em meio ao obscurantismo dos sertões – traço comum imposto pela grande propriedade rural – que exige muita capacidade e força moral daqueles que nele resiste, Expedito era a expressão da inexorável capacidade humana de não se quedar diante da terra inóspita e das milícias de jagunços, com a violência e as perversões que lhe são peculiares.

Aquele imigrante, lavrador, preto, pobre, sindicalista, religioso, líder estimado, comunista e poeta projetaram nele e em seus escritos, seguramente, a confirmação do milagre que a vida dos trópicos engendrou: o Brasil e o seu povo.

A luta pela terra – ensinou – não é um combate para corajosos, mas, sobretudo, para os que, na pobreza e na miséria procuram se insurgir no sentido de romper com os grilhões do atraso e do latifúndio com suas hordas de assassinos.

Tua morte, querido poeta, será vingada!

‘A sociedade socialista

que por ti foi almejada

ou mais cedo ou mais tarde

em fim será conquistada

pelo operariado

conquistando um novo estado

de homens inteligentes

que saibam sentir-se irmão

onde todo cidadão

passa sentir como gente!’

“Homenagem ao bravo combatente Paulo Fonteles!”, Expedito Ribeiro de Souza, 1987.

Referências Bibliográficas:

CARTAXO, Carlos. A Família Canuto e a Luta Camponesa na Amazônia. Belém: Editora da UFPA, 1999.

BARATA, Ronaldo. Inventário da Violência: Crime e Impunidade no Campo Paraense, (1980-1989). Belém: Editora Cejup, 1995.

RIBEIRO DE SOUZA, Expedito. O Canto Negro da Amazônia. Belém: Editora Falangola, 1991.

FONTELES FILHO, Paulo. Araguaianas: As histórias que não podem ser esquecidas./ Paulo Fonteles Filho; ilustrado e editado por Paulo Emmanuel. São Paulo: Anita Garibaldi, coedição com a Fundação Maurício Grabois, 2013.

CANUTO, José. A História de João Canuto. Belém: Mandato do Vereador Paulo Fonteles Filho, 2003.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor