Uerj revoga título de Doutor Honoris Causa do ex-presidente Médici
Decisão é baseada em pesquisa histórica, incluindo o trabalho de comissões da verdade
Publicado 13/05/2025 11:10 | Editado 13/05/2025 10:10

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) decidiu, na última sexta-feira, dia 9, revogar o título de Doutor Honoris Causa concedido em 1974 pela instituição ao general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil entre 1969 e 1974, durante a ditadura militar. A decisão se deu por unanimidade, em sessão do Conselho Universitário (Consun) [1]. O parecer que embasou a decisão foi elaborado pela Comissão da Verdade e Memória Luiz Paulo da Cruz Nunes, da Uerj, instituída pela universidade em 2024 para averiguar os fatos ocorridos na instituição durante o período ditatorial (1964-1985).
De acordo com o parecer [2], Médici não atendia aos critérios estabelecidos no regimento para outorga da honraria: “personalidade eminente, nacional ou estrangeira, que tenha se destacado singularmente por sua contribuição à cultura, à educação ou à humanidade”.
Alinhado às forças reacionárias de extrema-direita responsáveis pelo golpe de 1964, Médici cumpriu papeis de protagonismo no regime militar ditatorial. Ele foi comandante da Academia Militar de Agulhas Negras na época do golpe de 1964 e um de seus principais conspiradores. Serviu dois anos como adido militar na Embaixada do Brasil em Washington, quando estreitou laços militares e políticos com os EUA, país que contribuiu com o golpe no Brasil contra João Goulart e as forças trabalhistas. De volta ao Brasil, em 1967, Médici assumiu a chefia do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Antes mesmo de assumir a presidência do país, Médici colaborou para a edição, em 1968, do AI-5, ato institucional que representou o endurecimento de um regime que aplicava práticas de tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas críticas ao golpe. Na presidência, Médici atuou como ditador, com ameaças aos opositores e silenciamento contínuo. Seu mandato pôs em prática as arbitrariedades previstas no AI-5, “com o objetivo de sufocar toda e qualquer oposição à ditadura, liquidar a resistência das organizações revolucionárias e impor a aceitação do regime”, conforme explica o parecer da Comissão da Verdade da Uerj. “Suas armas foram a violência, a tortura, os assassinatos de presos políticos, a censura e a propaganda”, diz o documento.
O golpe perpetrado pela direita brasileira usurpou a República e roubou, naquele momento, o sonho de um Brasil independente, democrático e popular. O governo Médici representou os anos mais duros daquele regime ditatorial. Enquanto o general esteve no comando, 98 pessoas foram assassinadas por motivação política, de acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue à presidente Dilma Rousseff.
As universidades brasileiras, entre elas a Uerj, também foram alvo da repressão. Havia também um certo “colaboracionismo” das autoridades universitárias com o regime ditatorial e a concessão do título poderia trazer maiores benefícios para a instituição. É o que explica o relator da proposta de revogação, o conselheiro André Furtado. A concessão do título de Doutor Honoris Causa a Médici foi feita quando ele ainda era presidente.
Em um momento em que no Brasil há um inédito processo em curso para punir a tentativa de golpe feita pela extrema direita, incluindo a participação de militares, o ato da Uerj é mais um exemplo de como a pesquisa histórica dialoga com o presente. Ele é um recado sobre a importância da valorização e do fortalecimento das instituições democráticas. Nesse ponto, a fala da reitora da Uerj, Gulnar Azevedo e Silva, que comemorou a decisão, é significativa: “Fico muito feliz. Estamos cumprindo nosso papel de reparação, num momento em que o mundo precisa entender que a defesa incondicional da democracia deve estar presente em todos os espaços” [3], afirmou em seu pronunciamento na sessão do Consun.
Com a decisão, a Uerj se junta a outras universidades que nesta década já revogaram títulos a presidentes ditadores, como a UFRGS, a UFRN, a Ufes, a UFPel etc. No caso desta última, a decisão de revogação foi tomada alinhada a recomendações da Comissão Nacional da Verdade e do Ministério Público Federal (MPF).
As revogações de títulos a ditadores contam com o apoio de grande parte da comunidade acadêmica e da sociedade em geral. Mas, em uma sociedade muito polarizada, é claro que tem quem discorde: aqueles que se alinham aos setores reacionários e golpistas, saudosistas da ditadura, reagem mal às revogações. Em abril do ano passado, por exemplo, quando a Universidade Federal do Paraná (UFPR) revogou os títulos de três presidentes da República militares (Castelo Branco, Costa e Silva e Ernesto Geisel), um dos críticos foi o deputado federal Hélio Lopes, do Rio de Janeiro, que escreveu em suas redes: “É impressionante como o brasileiro tem a mania de reescrever a própria história, concordam?”
Talvez Hélio Lopes não saiba, mas a reescrita da história faz parte da historiografia, no Brasil e no mundo. A ciência, em geral, muda seus postulados na medida em que fatos e indícios novos contrariam fatos e indícios anteriores. Portanto, a ciência não é estanque, não é estática. Logo, a história, enquanto ciência que lida com as transformações do homem no tempo, também não é.
Os títulos revogados foram concedidos em um período de forte repressão. No caso da UFPR, o de Castelo Branco foi entregue em 1964; o de Costa e Silva, em 1968; e o de Geisel foi concedido em 1976 e entregue em 1981. Pensemos no tanto de mudanças sociais que ocorreram no Brasil de lá para cá. Mais especificamente, pensemos no tanto de material de pesquisa, que constitui novos fatos e provas que foram se acumulando por todos esses anos. Estamos falando, por exemplo, da abertura de arquivos a partir da redemocratização; do tanto de relatos orais de vítimas da ditadura que foram registrados; de ciência forense aplicada em ossadas e desovas clandestinas que foram encontradas (como no cemitério de Perus, em São Paulo) [4]; do uso da arqueologia histórica em locais que foram centros de tortura, como o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Belo Horizonte e o Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo [5].
Tudo isso é material de pesquisa histórica e, na medida em que surge e é analisado, justifica as tais reescritas da história, sobre a ditadura e sobre outros demais fenômenos do passado. O que não se justifica é defender sempre as mesmas coisas mesmo diante de fatos e indícios contrários que se acumulam com os anos.
Nesse ponto, cabe ressaltar um trecho do parecer da Uerj pela revogação que é muito significativo: “Durante muito tempo, alguns fatos ficaram desconhecidos, até que se conseguiu revelar os terrores dos tempos ditatoriais.” É exatamente isso! A história muda. A ciência muda. Mas os dogmáticos não mudam nunca.
Como foi escrito em um muro do cemitério de Perus: “Os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.
Referências:
[1] 09/05/2025 – 4ª Sessão Ordinária do CONSUN:
[2] Parecer da Comissão da Verdade da Uerj:
<https://www.uerj.br/wp-content/uploads/2025/05/PARECER-Comissao_da_Verdade_e_Memoria__CVM_UERJ_cancelamento_do_titulo_Medici_2.pdf>
[3] Conselho Universitário da Uerj revoga título de Doutor Honoris Causa do ex-presidente Emílio Médici:
<https://www.uerj.br/noticia/conselho-universitario-da-uerj-revoga-titulo-de-doutor-honoris-causa-do-ex-presidente-emilio-medici/>
[4] Ciência forense ajuda a identificar mortos da ditadura militar brasileira:<https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Historia/noticia/2020/03/ciencia-forense-ajuda-identificar-mortos-da-ditadura-militar-brasileira.html>
Uma luta contra o desaparecimento
<https://revistapesquisa.fapesp.br/uma-luta-contra-o-desaparecimento/>
[5] Arqueologia histórica investiga da colonização à ditadura
<https://revistapesquisa.fapesp.br/arqueologia-historica-investiga-da-colonizacao-a-ditadura/>