Um olhar nas histórias em quadrinhos

Os quadrinhos seguem firmes e fortes pelo mundo, com produções praticamente em todos os países do planeta

Tico-Tico foi a primeira revista em quadro do Brasil, lançada em 1905 l Foto: Reprodução

O mundo mudou profundamente do século XIX para cá e as histórias em quadrinhos estiveram sempre inseridas nesse processo. O fenômeno da Indústria Cultural, teorizada pela Escola de Frankfurt[1], da qual as HQs estadunidenses indubitavelmente são parte, de maneira declarada ou por serem atraídas pelas ideias-força daquele país, foi uma das grandes características da segunda metade do século XX, em particular no fim da Segunda Guerra Mundial com o deslocamento do eixo de poder para os Estados Unidos, do ponto de vista econômico, militar e ideológico.

As HQs estadunidenses foram marcantes durante todo século XX, viajaram o mundo nos braços dos syndicates[2], levaram o american way life para além das fronteiras daquele país, contribuíram e muito com o processo de soft power do qual tanto falaram os teóricos de Frankfurt: da dominação cultural, da introjeção de valores e opiniões.

Sofreram mudanças também. As HQs acompanharam o movimento da saída do homem do campo para cidade, o aumento do protagonismo feminismo, as mudanças nos costumes, nas relações interpessoais, nos códigos de conduta (quem imaginaria hoje uma HQ com uma criança segurando um charuto, como vimos no clássico Yellow Kid[3]?!)

Curiosamente, essa globalização da produção americana atingiu seu ápice quase que simultaneamente com a “caça às bruxas” aberta nos Estados Unidos pelo senador Joseph McCarthy na década de 1950. Ele enxergava traidores e subversivos por toda a parte, acusou duramente os quadrinhos de serem parte desse processo, foi responsável pela destruição de editoras inteiras que encontraram a falência devido às fogueiras das HQs por ele estimulada e um duro código de ética (A E.C. Comics foi a mais emblemática vítima disso, com o fim de várias publicações de terror e suspense), afetando enormemente o mercado das revistas impressas e durando até o final dos anos 80 do século XX.

A década de 1990 enterrou de vez as sequelas do código de ética macartista, o mundo se globalizou cada vez mais, o advento das inovações tecnológicas, internet, grande conectividade e melhorias no processo de editoração feririam de morte os syndicates estadunidenses. Hoje, vivem seu descenso, há de se destacar que chegaram a ser modelo até para nós brasileiros. Aqui, tivemos nossa versão tupiniquim com algumas tentativas de aglutinar e distribuir as tiras nacionais nos jornais brasileiros.

Nesse novo mundo do século XXI, os quadrinhos digitais são uma realidade, proliferaram pequenas editoras, existem iniciativas solo, custeadas por crowdfunding, dando acesso a novos materiais, dentre várias outras possibilidades. As HQs também romperam fronteiras, circularam mais entre os países, os próprios quadrinhos estadunidenses precisaram absorver aspectos culturais do resto do mundo para tentar refletir esse novo momento mais diversificado, com fronteiras mais tênues entre os países e os povos, onde a circulação de ideias, cultura e pessoas ganhou outro formato e outra dinâmica, muito mais viva, rápida e flexível.

Os quadrinhos seguem firmes e fortes pelo mundo, com produções praticamente em todos os países do planeta, reinventando-se dia após dia nos formatos, na distribuição, na versão digital, passaram a existir online, extrapolaram as páginas, inundaram as redes sociais, blogs e outros.

Porém, tristemente foram saindo cada vez mais das páginas dos jornais, são muitos os casos em que o espaço para as tirinhas deixou de existir em periódicos brasileiros, estadunidenses e de outros países. Tal movimento acompanha o próprio ocaso do jornal impresso, o avanço da comunicação com as notícias ofertadas nos portais de internet, versões digitais dos antigos jornais.

Há toda uma polêmica sobre isso: será o fim do livro impresso? Ou os livros seguirão existindo, como foi com o cinema, que resiste mesmo com o surgimento do VHS, seguido dos DVDs e blu-rays e, por fim, pelos serviços de streaming?

Em 2019, Cangaço Overdrive foi semifinalista do Prêmio Jabuti, na categoria Histórias em Quadrinhos

Mas, números do momento que escrevo essas linhas, em julho de 2020, mostram o alcance dos quadrinhos no mundo e no Brasil. Durante a pandemia que agora vivemos, o consumo do gênero cresceu enormemente, aumentando a circulação e demanda. As pessoas buscam a fantasia, a emoção, o sonhar nas páginas dos quadrinhos para sobreviver a momentos como esse do Covid-19, conseguindo se divertir e seguir em frente. Isso é algo a destacar, os quadrinhos mostram uma vitalidade, uma atualidade e uma capacidade adaptativa como nenhuma outra arte conseguiu até hoje. A nona arte seguirá existindo, firme e forte enquanto existirem pessoas apaixonadas que, como eu, humildemente escrevem sobre ela e vocês, lendo e a mantendo viva. Além dos(as) artistas que as produzem, sem eles não haveria HQs.


[1] A Escola de Frankfurt foi uma escola de análise e pensamento filosófico e sociológico que surgiu na Universidade de Frankfurt, situada na Alemanha. Tinha como objetivo estabelecer um novo parâmetro de análise social com base em uma releitura do marxismo.

[2] Syndicate é uma empresa responsável por distribuir conteúdo para jornaisrevistas e internet tais como tiras cômicasartigospalavras cruzadas e outros passatempos.

[3] The Yellow Kid (“O Garoto Amarelo”), era o personagem principal de Hogan’s Alley, uma das primeiras histórias em quadrinhos a ser impressa em cores.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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