Um vôo de galinha

Vôo de galinha foi uma expressão cunhada por alguns economistas para caracterizar os ciclos de produção do capitalismo brasileiro desde que por aqui se instalou o que o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Marcio Pochmann, chamou

O problema começou com a crise da dívida externa, que eclodiu em 1982 através da moratória mexicana e foi causada em grande medida pela violenta alta dos juros nos EUA, promovida de maneira unilateral para salvar o padrão dólar. Nessa crise foi comprometido seriamente o desenvolvimento das economias nacionais em quase toda a América Latina.


 



Os ciclos de crescimento tornaram-se mais curtos e instáveis, as recessões se sucederam com maior freqüência que durante o nacional-desenvolvimentismo (1930-80) e o resultado geral foi um recuo sensível das taxas médias de crescimento do PIB, a hiperinflação e a estagnação da renda per capita. O encurtamento do ciclo de prosperidade neste período motivou a comparação com o vôo tímido da galinha, ao qual a metáfora contrapõe o vôo da águia, mais alto e mais longo.


 


Singularidade da crise


 


 


Anos atrás, alguns observadores ainda apontavam o exemplo do comportamento da economia estadunidense, aparentemente muito saudável, em contraposição ao desempenho medíocre do PIB no Brasil, também designado de stop and go (pára e arranca). Hoje, já não se fala mais nisto, pois quem parece estar experimentando um autêntico vôo de galinha são os EUA, com a economia mergulhada em grave e profunda crise.


 



Uma das particularidades da crise no principal centro do sistema imperialista mundial reside precisamente no fato de que, ao contrário da anterior, esta se verifica após um curto e instável período de crescimento da economia, desmentindo as previsões otimistas (que chegaram a ser moda) de que os Estados Unidos estavam relançando sua hegemonia econômica e iriam liderar o crescimento do capitalismo mundial pelo menos até 2050.



 


A recessão de 2001


 


Os EUA viveram sua última recessão em 2001. Aparentemente, foi uma crise breve, que teria durado apenas os dois primeiros trimestres, em que o valor global da produção recuou. Reagindo aos estímulos do governo e à redução dos juros, o PIB voltaria a apresentar sinais positivos no segundo semestre daquele fatídico ano, apesar dos atentados contra as torres gêmeas em 11 de setembro.


 


 


Na realidade, o fenômeno não foi tão suave como sugerem as estatísticas sobre o PIB. A recessão, precedida pelo colapso da “Nova Economia” (o estouro da chamada bolha ponto.com, que fez muitas vítimas), foi maior na indústria (com exceção da construção civil) e teve efeitos mais perversos sobre o nível geral de emprego que a crise anterior, de 1991. A recuperação da produção manufatureira e do emprego só ocorreu a partir de 2003.



 


Fim das ilusões


 


O vôo de galinha da economia estadunidense transparece quando comparamos o crescimento do seu último ciclo com o anterior. Se considerarmos que a recuperação econômica teve início no segundo semestre de 2001, como sugere o comportamento oficial do PIB, verificamos uma expansão de seis anos.


 



Se levarmos em conta a evolução da indústria manufatureira e do emprego, será forçoso concluir que a recuperação começou mais tarde, em 2003, de forma que teremos apenas 4 anos de (frágil) bonança. Qualquer que seja o critério, a comparação resulta negativa para o ciclo iniciado no século 21 em relação à expansão dos anos 1990, que durou quase 10 anos e ocasionou muitas ilusões em relação ao estado de saúde do império – ilusões que estão se dissolvendo nas brumas da crise. 


 


Ciclo parasitário


 



Ao longo do festejado boom verificado na última década do século 20, o Departamento de Comércio dos EUA inventou o falso conceito de Nova Economia (depois amplamente difundido) para caracterizar o ciclo de prosperidade, sugerindo que as tecnologias que revolucionaram as comunicações, criando a internet, subverteram as leis que orientam o processo de reprodução do capitalismo ianque de tal modo que as crises cíclicas teriam sido abolidas. A falácia certamente serviu à propaganda imperialista e ao unilateralismo da Casa Branca, mas não resistiu ao tempo.


 


 


A expansão “gloriosa” daquele período, movida a investimentos estrangeiros, agravou sobremaneira o parasitismo da sociedade estadunidense, gerando a bolha imobiliária e levando à explosão do déficit em conta corrente e, por conseqüência, à necessidade de financiamento externo, o que estimulou a decomposição do padrão dólar. Lênin tinha toda razão quando sugeriu que o parasitismo econômico, fenômeno negligenciado pela maioria dos economistas e historiadores, é um vício social letal para os impérios (1).


 


 


Unidade de contrários


 


Talvez mais do que em qualquer outra época, o novo ciclo de crescimento iniciado em 2001 refletiu os efeitos do crescente parasitismo no processo de reprodução do capitalismo nos EUA. Estimulado pela dramática redução das taxas de juros e ampliação do crédito, o crescimento da economia após a recessão de 2001 foi puxado pelo consumo, que passou a representar 70% do PIB (equivalia, em média, a 62% do valor da produção nos anos 1980).


 


Naturalmente, conforme observou Karl Marx, há uma relação dialética entre consumo e produção. A vida social estabelece uma unidade de contrários entre ambos, de forma que “a produção é (…) imediatamente consumo; o consumo é, imediatamente, produção”. Sem produção “não há consumo” e “sem consumo tampouco há produção” (2). Por tal razão, é de se esperar que o aumento do consumo seja acompanhamento ou precedido de um crescimento proporcional da produção. Todavia, não foi isto que se deu nos EUA.


 


Expansão distorcida


 


O extraordinário avanço do consumismo não teve contrapartida na produção industrial doméstica, configurando o que o economista americano Robert Brenner chamou de “uma via distorcida de expansão” e que podemos caracterizar também como um ciclo de reprodução parasitário (3). Registre-se que o consumo esteve em expansão, de forma inusitada, mesmo durante a recessão de 2001, o que à primeira vista pode parecer um contra-senso. Todavia, já se sabe que o hiato entre produção e consumo encontra sua explicação nas relações que o imperialismo americano estabelece com o resto do mundo e no seu histórico desequilíbrio comercial.


 


 


O apetite dos consumidores resultou, obviamente, numa forte expansão do comércio varejista, associada não mais ao incremento da produção doméstica, como seria normal, mas ao aumento apreciável das importações, que além de respaldar o relativo sucateamento da indústria americana também impulsionou o déficit em conta corrente e abalou a credibilidade do padrão dólar.


 


Ascensão da China


 


Graças ao avanço do déficit comercial entre 1992 e 2001, o comércio varejista criou 2,4 milhões de empregos, um aumento de 19%. No mesmo período, a taxa de lucro do ramo subiu todos os anos, num total de 57%, tendo inclusive um aumento de 8% mesmo durante a recessão de 2001, de acordo com Brenner.


 


 


Percebe-se que a unidade entre produção e consumo foi restabelecida através do comércio exterior, acompanhando a mudança do eixo dinâmico da industrialização do mundo para o outro lado do Pacífico, com destaque para a formidável ascensão da China, onde o crescimento ininterrupto do PIB é uma realidade que se reproduz há décadas, enquanto nos EUA não passou de um sonho de uma noite de verão da burguesia imperialista, logo desfeito pelo pesadelo da crise. O parasitismo do Tio Sam estimulou as exportações e a produção industrial na Ásia.


 


 


Atividade improdutiva


 



Se quisermos aprofundar a compreensão do processo de reprodução do capitalismo norte-americano é indispensável recorrer ao juízo fundamental e muito útil de Karl Marx sobre o caráter essencialmente improdutivo da atividade comercial (4). Recordemos que o comércio não produz valor. A criação de valor, ainda hoje, ocorre principalmente nos setores industrial, cujo comportamento, no interior da potência capitalista hegemônica, tem sido desastroso. Assim como os juros, aluguéis e impostos, o lucro comercial é subtraído da mais-valia criada no setor produtivo durante o processo social de redistribuição dos lucros entre os vários ramos em que se repartem os investimentos capitalistas.


 



Enquanto o comércio, a bolha imobiliária (iniciada em 1997), os gastos militares, as importações e o sistema financeiro cresciam, alavancando a recuperação do PIB registrada a partir do segundo semestre de 2001, “os setores industriais e correlatos” (com exceção da construção civil) “continuaram numa contração profunda, cuja origem vinha desde 1995 e baseava-se num excesso constante e global da capacidade instalada, na intensificação da competição estrangeira e na longa sobrevalorização do dólar”, conforme assinalou Robert Brenner no referido artigo. “Entre julho de 2000 e outubro de 2003, os empregadores eliminaram 2,8 milhões de postos de trabalho no setor industrial”. Só no final de 2003 é que se esboçou uma tímida recuperação.


 


 


Taxa de acumulação


 


 


Com um pouco de imaginação, não será difícil deduzir que a hipertrofia do consumo e do comércio varejista, assim como dos bancos, em associação com a crônica anemia da indústria, são sinais de que o excedente econômico (mais-valia, lucro) gerado no setor produtivo está estagnado ou em queda.


 


 


Isto significa que a taxa de acumulação e expansão do capital produtivo (sobretudo do capital industrial) no interior dos EUA é muito baixa, especialmente em comparação com padrões asiáticos, refletindo a queda (relativa) dos lucros produzidos e apropriados no setor. 


 


Em contrapartida, “entre 1994 e 2000 o lucro do setor financeiro dobrou”, de acordo com Brenner. “Já que, no mesmo período, o lucro do setor empresarial não-financeiro” (incluindo o comércio, que como vimos acima vai muito bem) “só aumentou 30%, o lucro do setor financeiro, em relação ao lucro empresarial total, pulou de 23% para 39%”. Uma das expressões do parasitismo é o avanço espetacular das atividades improdutivas, que em nada contribuem para a formação de poupança interna, muito pelo contrário.


 


Corrosão da poupança


 


O consumismo, quando exacerbado, revela-se inimigo da poupança. Ao aumento do consumo das famílias correspondeu uma redução substancial da taxa de poupança familiar, que em poucos anos declinou de 8% do PIB para um percentual inferior a 1%. Assim, a outra face da baixa acumulação no setor produtivo é a corrosão da poupança interna, que se tornou negativa ou “chocantemente baixa” nas palavras do economista Joseph E. Stigritz, o que amplia a necessidade de financiamento externo e traduz o parasitismo da sociedade estadunidense. Por definição, a diferença entre poupança e investimentos internos é igual ao déficit em conta corrente, que em 2007 alcançou mais de 800 bilhões de dólares, ou cerca de 7% do PIB norte-americano, e está recuando agora em função da forte queda do dólar.


 


É parvoíce imaginar que este rombo, agregado diariamente ao passivo externo, não tem relevância para os EUA, já que eles podem dar-se ao luxo de honrar suas obrigações externas emitindo papel-moeda. Basta ver o que está ocorrendo com o dólar no mundo para perceber que tal conjectura projeta uma representação falsa da realidade, muitas vezes expressa com tola arrogância, mas que conduz a equívocos na estratégia.


 


 


Explosão do endividamento


 


 


Sem o respaldo da poupança interna, o consumo parasitário, ou seja, maior que a renda produzida no país, só podia ser bancado (como de fato foi) pela explosão do crédito e do endividamento. O aumento dos gastos militares promovido por Bush, por seu turno, ampliou o déficit e a dívida pública, de modo que o modesto crescimento do PIB desde 2001 foi muito mais uma expansão da dívida do que da produção.


 


 


Estima-se que o endividamento total dos EUA (famílias, governo e empresas) já se eleva a mais de 50 trilhões de dólares, cabendo ressaltar o crescimento do passivo externo líquido. A crise financeira em curso tem tudo a ver com a expansão do endividamento, que no caso das famílias esteve fortemente concentrado no ramo imobiliário. Comunica-se com o exterior através da dívida externa superior a 12 trilhões de dólares. O que se viu não foi um boom, mas uma bolha, conforme sugere Brenner.


 


Crise do imperialismo


 


Marcado de forma acentuada pelo parasitismo, a crise nos Estados Unidos não deve ser encarada como mais uma crise cíclica de curta duração, da qual a potência hegemônica tende a sair com tranqüilidade e mais forte do que antes, como sugerem alguns analistas (5). A turbulência financeira atual “é expressão da crise do imperialismo” e esta não é apenas conjuntural, conforme já assinalou o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo (6).


 


Na verdade, não é só uma crise imobiliária que está em curso. A turbulência financeira originada pelos empréstimos hipotecários e os problemas conjunturais ocorrem num ambiente mais geral de crise da hegemonia dos EUA, que é ao mesmo tempo econômica e política, tem um caráter histórico mais amplo e também abarca a decomposição do padrão dólar. Os fenômenos estão entrelaçados.


 


 


Fim de uma era?


 


A reprodução do capitalismo norte-americano não pode ser bem compreendida se focalizarmos apenas o mercado interno. A forma com que a necessidade de financiamento externo do império vem sendo satisfeita determina o que Brenner chamou de padrão de desenvolvimento econômico internacional, que data da primeira metade da década de 1980 (quanto Tio Sam deixou de ser credor e passou a acumular sua gigantesca dívida externa).


 



“O aumento pronunciado da importação de produtos industrializados pelos Estados Unidos e do seu déficit comercial”, nota o economista estadunidense, “amplia o déficit norte-americano de transações corrente, expande o endividamento externo do país e alimenta o crescimento baseado em exportações de boa parte do resto do mundo, em especial do leste da Ásia”. Se o dólar continuar afundando, a hegemonia monetária dos EUA irá para o ralo e este padrão de desenvolvimento não será mais sustentável e terá de ser substituído. Não estamos diante de uma hecatombe ou de um colapso, mas o crescimento dos países ditos emergentes, com destaque para a China, em conexão com a redução da importância relativa do mercado estadunidense para o mundo, sugere que já ingressamos numa fase de transição e mudanças, embora ninguém possa antecipar o que virá, pois os partos e as transformações históricas não são indolores. Quem viver verá.    


  



Notas


 


1-As referências do grande líder da revolução soviética ao conceito de parasitismo, que parece ter sido formulado originalmente pelo economista e historiador inglês John A. Hobson, podem ser encontradas no livro “O imperialismo, fase superior do capitalismo” e nos “Cadernos” de anotações acerca do tema, entre outros textos de W. I. Lênin. 



2-No texto intitulado “Para a crítica da economia política”, de acordo com a tradução de José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi, o pensador alemão disse o seguinte: “A produção é, pois, imediatamente consumo; o consumo é, imediatamente, produção. Cada qual é imediatamente o seu contrário. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem o qual não teria objeto. Mas o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. O produto recebe seu acabamento final no consumo (…) Sem produção não há consumo, mas sem consumo tampouco há produção.”



3-A opinião de Robert Brenner pode ser conferida no seu excelente e profético ensaio intitulado “Novo boom ou nova bolha?”, publicado no livro “Contragolpes”, uma seleção de artigos da revista New Left Review, organizado por Emir Sader e editado pela Boitempo.



4- A diferenciação e interação entre o processo de produção e o processo de circulação das mercadorias foram exaustivamente analisadas por Karl Marx. No livro 3 de “O Capital”, em que disseca o processo global da produção capitalista, ele reitera suas idéias sobre o caráter eminentemente improdutivo do capital mercantil (comercial e financeiro). “O capital mercantil é capital que só funciona na esfera da circulação. O processo de circulação é uma fase do processo global de reprodução. Mas, no processo de circulação não se produz valor, nem mais-valia portanto. A mesma quantidade de valor experimenta apenas mudança de forma. Na realidade ocorre somente a metamorfose das mercadorias, a qual por si nada tem com criação ou variação de valor” (Karl Marx, “O capital”, livro 3, capítulo 16, CB, tradução de Reginaldo Sant´ana). O capital comercial, assim como o capital financeiro, apropriam-se, porém, de parte do lucro produzido no setor produtivo, que pode ser maior ou menor do que o lucro retido na indústria, na agricultura e nas atividades que produzem valor e mais-valia.



5- É o caso do professor José Luíz Fiori, cujo artigo intitulado “Crises e Hecatombes”, publicado pelo “Vermelho” dia 26 de março, (leia aqui) sugere que a hegemonia dos EUA, supostamente reafirmada no final dos anos 1970, ainda não está em questão.


 


6-Ver matéria publicada no “Vermelho” dia 19-08-2007 sob o título “Turbulência financeira é expressão da crise do imperialismo, diz Renato” (leia aqui)

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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