"Xingu": Fronteiras de sangue

Diretor paulistano Cao Hamburger ao traçar a saga dos Irmãos Villas Bôas no centro-oeste acaba mostrando a expansão da fronteira agrícola do país e a ocupação das terras por latifundiários e mineradoras

Devagar, o cinema brasileiro faz um inventário da identidade nacional e planta na cabeça da atual geração que a construção do “Brasil da classe C” é obra de diversos construtores. Muitos deles anônimos. Alguns, como os Irmãos Villas Bôas, vêm tendo sua imagem gravada ao longo de sete décadas. Esta fixação no imaginário da juventude cresceu nos últimos. Foge ao estigma de que ela quer apenas comédias rombudas, surf e baladas. A maioria termina se desvendando na tela. Existe ainda um país a ser descoberto e está ao alcance dos olhos.

“Xingu”, do paulistano Cao Hamburger (“O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias”), se insere nesta linha de “cinema memorialístico”, que inclui o documentário em si: “Niemayer – A Vida é um Sopro”, de Fabiano Maciel; “Eu Eu Eu José Lewgoy”, de Claúdio Kahns; “Marighella”, de Isa Ferraz; “Raul Seixas – O Início, o Fim e o Meio”, de Walter Carvalho, à cinebiografia ficcionada: “Cazuza”, de Sandra Werneck e Walter Carvalho; “Garrincha”, de Milton Alencar, ou filmes que tratam dos ”anos de chumbo”: “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, e “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende, para ficar só nestes exemplos. Há neles a urgência de gravar a história e seus “personagens” e não deixá-los se perder no imediatismo da mídia do capital.

Há neles um olhar adverso ao do fixado pelo “Cinema Novo”: o da vertente terceiromundista em contraposição ao cinema produzido no centro imperialista (leia-se Hollywood). Esta visão político-ideológica, até hoje forte e emblemática, está presente na maioria das obras atuais. Mas com outro viés: é menos ideológica e mais política, por mais que seus diretores e roteiristas não o propaguem. A questão não é de “engajamento”, mas de opção pelos “personagens” e suas lutas. Acabam mostrando uma variedade de opções para as novas gerações escaparem aos microprotestos que apontam os algozes (o capitalismo, os banqueiros), mas não se organizam para substituí-los.

Em “Xingu”, os algozes são os grileiros e os latifundiários. São eles que se apropriam das terras dos índios, acobertados pela política dos sucessivos governos centrais desde o Império. Mas foi Getúlio Vargas (1930/1945) com a política de expansão da fronteira agrícola, via Operação Roncador, que agudizou a cobiça pelas terras indígenas. E a Ditadura Militar (1964/1985), com a construção da Transamazônica, abriu ainda mais espaço para a implantação do agronegócio, gerando conflito permanente entre índios, camponeses e garimpeiros, de um lado, e grileiros, latifundiários e mineradoras, de outro.

União perversa entre governos e latifundiários

“Xingu” permite esta compreensão ao traçar a saga dos Irmãos Villas Bôas a partir da opção que fizeram de ir para Xavantina, Mato Grosso, em 1943, sem saber o que lá encontrariam. Descobririam uma região inóspita, habitada, em princípio, pelos xavantes, e na mira do Governo Vargas que queria integrá-la à nação e nem sabia das contradições que desencadearia. Os Villas Bôas enfrentou-as, aprendendo às duras penas a realidade da vastidão das bordas do rio Xingu até a Amazônia. Um aprendizado não só para eles, como para os índios xavantes, trumais e kaiabys, acostumados à violência de posseiros, grileiros e latifundiários.

Aos Villas Bôas coube desvendar/desbravar a imensidão. Cláudio (João Miguel), bom estrategista e destemido, travou batalhas literalmente armado para defender não só a política dos sucessivos governos centrais como suas próprias idéias. Já Orlando (Felipe Camargo), o mediador-político, coube superar as exigências e mazelas dos senhores do poder, e Leonardo (Caio Blat), intempestivo e nem por isto menos visionário, não pôde usufruir da glória de seus irmãos. A luta contra a incipiente penetração do capitalismo no campo, no caso na floresta virgem, permitiu-lhes antever a extinção dos índios e lutar pela demarcação de reservas indígenas em todo território nacional.

O resultado inicial foi a criação do Parque Nacional do Xingu, numa área de dois milhões de metros quadrados, por Jânio Quadros, em 1961. Os Villas Bôas venceram. Não sem sobressaltos e concessões. Em sequências ilustrativas, Hamburger põe Cláudio e Orlando numa discussão sobre a quem serviam e a que custo. E Orlando num diálogo ríspido com o general que exigia dele manter os índios krenak fora do traçado da Rodovia Transamazônica o confirma. São passagens que mostram o braço pesado dos generais em sua ânsia de “ocupar para não entregar” e a aquiescência forçada de ambos.

O “Xingu” de Hamburger não é bucólico, filmado para turistas e amantes da Amazônia, é, pelo contrário, inóspito, impenetrável, gera medo e mistério. E tem a tocante sequência de Cláudio em conflito por sua paixão pela índia Kaiulu (Adana Kambeba), sendo acariciado pelo filho xavante. Pura poesia, sem ser piegas. Afinal, mesmo lutando para ter a pele dura, a sensibilidade aflora e o homem sucumbe a sua porção humana. Cinema tem dessas coisas.

“Xingu”. Drama/cinebiografia.
Brasil. 2011. 116 minutos.
Música: Beto Villares.
Fotografia. Adriano Goldman.
Roteiro: Elena Soarez, Ana Muylaert, Cao Hamburger.
Elenco: João Miguel, Felipe Camargo, Caio Blat, Maria Flor.

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