A autonomia das universidades em risco na USP

A ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo (USP), que completou três semanas – teve início no dia 3 de maio último – é a “pedra” da sopa de um debate que, extrapolando aquele acontecimento e suas circunstâncias, retomou com enfâse um tema sensível para a democracia: a questão da autonomia das universidades.


 


 


 


A autonomia foi conquistada na redemocratização do país após a ditadura militar de 1964 e assegurada pela Constituição de 1988. Na USP, ela é aplicada desde 1989; além disso, as universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp) se beneficiam de uma vinculação orçamentária, definida em lei, de 9,57% da arrecadação do ICMS no Estado.


 


 


 


A autonomia garantida pela Constituição é pedagógica e, principalmente, administrativa – cabe à universidade decidir, livremente e sem qualquer contingenciamento orçamentário, sobre a aplicação daqueles recursos.


 


 


 


A tentativa de “enquadrar” as universidades e determinar, externamente, critérios para o uso desses recursos é o pano de fundo da crise. E foi seu estopim. O foco da crise tem nome e endereço conhecidos: ele está localizado no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, e seu principal artífice foi o próprio governador tucano José Serra que, no início de seu mandato, publicou decretos ambíguos a respeito daquilo que a Constituição garante para as universidades.


 


 


 


O primeiro desses decretos, de número 51.460, de 1° de janeiro de 2007, fracionou a educação pública estadual ao criar uma Secretaria de Ensino Superior, subordiando a ela as universidades estaduais paulistas. Outro decreto, o de número 51.461, da mesma data, feriu a autonomia universitária ao privilegiar a pesquisa “operacional” em detrimento da pesquisa básica, ao não prever o financiamento público para as universidades, ao conceder ao Secretário do Ensino Superior a prerrogativa de propor diretrizes para o ensino superior, em todos os seus níveis, e ao alterar a composição do Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas), integrando a ele os secretários da Educação, do Desenvolvimento e de Ensino Superior, além de integrá-lo à estrutura básica da secretaria de Ensino Superior. Já o decreto 51.471, de 2 de janeiro de 2007, proibiu por tempo indeterminado a contratação de pessoal; o decreto 51.636, de 9 de março de 2007, obrigou as universidades a se registrarem no Siafem (um organismo de controle dos gastos do governo do Estado ligado à secretaria da Fazenda) e autorizou a secretaria da Fazenda a descontar das liberações financeiras os valores correspondentes às contribuições previdenciárias “patronais” não recolhidas pelas universidades; o decreto 51.660, de 14 de março de 207 criou a Comissão de Política Salarial, transferindo a gestão dessa política para a secretaria de Gestão Pública, que passa a conduzir qualquer negociação com os trabalhadores da Administração Direta e das Autarquias (Universidades).


 


 


 


Os decretos de Serra sinalizam para uma política de nítida inspiração neoliberal, criando as condições para o controle, pelo governo estadual, das finanças, da política de recursos humanos (desde contratações até a política salarial, e da própria adminstração das universidades que ficariam, assim, dirigidas de “fora”, por autoridades do governo do Estado.


 


 


 


Foi para protestar contra esta ameaça e exigir da reitora da USP, Suely Vilela, uma posição claramente contrária a eles, que um grupo de estudantes – “apolíticos”, como foram inicialmente saudados pela mesma mídia que propagandeia os dogmas do neoliberalismo e da despolitização, e despartidarização, dos movimentos sociais – dirigiu-se à reitoria e, lá, resolveu ocupar as instalações no dia 3 de maio.


 


 


 


A crise, que poderia ter ficado restrita à USP, às universidades paulistas e ao próprio governo do estado, evoluiu e a questão assumiu dimensões nacionais, depois da sucessão de inabilidades que envolveu o próprio governador e suas medidas truculentas e arbitrárias, a reitoria da USP e os próprios estudantes que lideram o protesto. Sem uma direção clara e definida, algunss estudantes adotaram um tipo de radicalização sem incorporar um conjunto maior da categoria e, no limite, partiram para um confronto que esvazia seu movimento e a luta estudantil.


 


 


 


Embora a importância desta questão não possa – nem deva – ser subestimada, a crise envolve outro risco crucial: a autonomia universitária, uma conquista democrática que os neoliberais e seus aliados querem enquadrar — alegando a irracionalidade do atual movimento — aquilo que consideram como “privilégios” dos alunos das universidades públicas – reiterando argumentos da direita e dos conservadores sobre a necessária prestação de contas do uso de recursos públicos e insinuando, falsamente, a inexistência desta prestação de contas. E preconizando, bem ao gosto do conservadorismo dominante, uma “universidade de resultados”.


 


 


 


Um dos aspectos centrais do debate midiático que se arma em torno da crise da USP é justamente este, o da construção e reforçamentos dos argumentos contra a autonomia universitária e, no limite, contra a universidade pública e gratuita.


 


 


 


É neste contexto que vai sendo construída, neste debate, a legitimidade de outra tese, a de de que, a pretexto do respeito “à ordem constituída” (como escreveu o filósofo tucano José Arthur Gianotti, dia 24, na Folha de S. Paulo), não vacila em, se necessário, recorrer à polícia para restaurar aquela “ordem”.


 


 


 


São antípodas do reitor Pedro Calmon, da Universidade de Brasília, que, na iminência de sua invasão, nos primeiros anos da ditadura militar, declarou que naquela instituição soldado só podia entrar após o necessário exame vestibular.


 


 


 


Hoje, em plena vigência das garantias democráticas, a indignação contida na frase daquele intelectual conservador, parece ter falecido. O governador manda pedir a reintegração de posse, que a justiça decreta; a reitora da USP submete-se ao vexame de ir ao encontro do comandante da PM com o inventário dos objetos existentes no prédio ocupado; e o próprio comandante da PM paulista, o coronel Joviano Conceição de Lima, garante aos jornais que a negociação tem limites e já “está tudo pronto” para a invasão da universidade, que poderá mobilizar mais de mil policiais.


 


 


 


Há um princípio em jogo nesta crise: o da autonomia universitária, cuja integridade não pode ser posta em risco nem por regras administrativas que condicionam o uso dos recursos a determinações externas ao campus, e muito menos pela ameaça de ocupação policial. A autonomia envolve a independência da universidade para resolver seus próprios problemas de acordo com critérios cuja definição envolve o conjunto da comunidade acadêmica (alunos, professores e funcionários). Qualquer tentativa de resolver os problemas por outras vias (e principalmente pelo uso da força)  não passa de nostalgia do autoritarismo próprio da ditadura.