Davos: a administração de um desastre

Um espectro rondava a comuna suíça de Davos na abertura do Fórum Econômico Mundial, dia 26: ele mesmo, o espectro do socialismo.

Não que o socialismo esteja na ordem do dia, muito menos num Fórum como aquele, que reúne os ricaços, os banqueiros, governantes e grandes empresários mundiais. O mundo está maduro para o socialismo, já se proclamou, mas ainda será preciso lutar bastante para colocá-lo na agenda política das massas.

Em Davos o espectro foi corporificado num debate cujo tema era "a nova realidade econômica", no qual o moderador, Michael Elliott, que é editor da revista Time, referiu-se ao artigo de Robert Samuelson, um nome solidamente estabelecido no establishment capitalista, que tem um título significativo: "O capitalismo sob sítio".

Esta é a terceira edição do Fórum de Davos depois da eclosão da crise econômica de 2008 e, desta vez, representantes dos banqueiros e dos grandes empresários, saindo do recuo em que estiveram nas reuniões de 2009 e 2010, assumiram claramente a ofensiva em defesa do capitalismo. Um deles, James Turley, da norte-americana Ernst & Young, dos EUA, queixou-se do que chamou de “demonização” das grandes empresas. Em outros ambientes da reunião essa defesa também se manifestou. Em alguns painéis ou entrevistas à imprensa, grandes financistas, manifestaram-se contra a perspectiva de regulamentação que vai se firmando nos governos como estratégia para enfrentar a crise. Peter Sants, da Standard Chartered, diz que ela ameaça a retomada do crescimento global; Gary Cohn, do Goldman Sachs, acha que se colocam os holofotes apenas sobre os bancos e não em todo o sistema; Jamie Dimon, da JPMorgan, foi explícito e afirmou que chegou a hora de "parar de denegrir os bancos". Era o sítio ao capitalismo, do qual os especuladores se queixam.

Desde 2009 Davos não tem sido a costumeira celebração do capitalismo mas cenário de preocupações em relação aos enormes lucros, às ameaças crescentes de aprofundamento da crise social, e de resistência à regulamentação financeira e ao aumento da intervenção dos governos na economia.

O desafio para o grande capital é encontrar uma maneira de continuar ditando as regras num mundo cada vez mais desigual, cuja iniquidade agora é exposta também nos países ricos do Norte do planeta, cujos povos pareciam a salvo das ameaças da economia. Os dados que apareceram em Davos (e é surpreendente que passem a frequentar aquele ambiente e não os costumeiros fóruns de trabalhadores e lutadores pelo socialismo) mostram a reconcentração da riqueza nos EUA. Em 1929 a parcela de 1% mais ricos ficava com quase metade de toda a riqueza: 48%. Participação que caiu para 28% em 1968 e agora voltou a crescer para o mesmo patamar de 48% em 2008/2009. As perdas salariais refletem como um espelho esta reconcentração. Um assessor sindical da OCDE mostrou, em Davos, como nos últimos dez anos os salários perderam dez pontos percentuais de sua participação na renda nacional.

São desafios múltiplos para o capital que, em Davos, foram expressos em questões que, nos delirantes anos anteriores à crise, pareciam impensáveis naquele ambiente: a desigualdade, a fome no mundo, o deslocamento do poder mundial do Norte para o Sul e o Leste do planeta, entre outros temas.

O encontro terminou no domingo com posições contraditórias. Enquanto muitos apregoavam que a crise já passou, outros – entre eles o economista Nouriel Roubini, famoso por prever a crise atual – acham que o caldeirão ainda ferve e a crise ainda não completou seu ciclo.

O tamanho do desafio – e da ameaça – pode ser avaliado pelos números da especulação financeira, que já voltou ao nível existente antes da crise. O volume de derivativos (as aplicações favoritas dos especuladores) era de 100 trilhões de dólares em 2000 e passou para 700 trilhões em 2007; com a crise, diminuiu um pouco mas ainda está acima de 600 trilhões – isto é, dez vezes tudo o que se produz anualmente em todo o mundo. São títulos que, se seus donos quiserem trocar por riqueza real, tangível, concreta, jamais poderão apurar mais do que 10% de seu valor de face, se isso for possível!

Uma boa frase que resume o espírito da grande festa anual do capitalismo, encerrada em Davos neste final de semana, apareceu no diário O Globo (dia 31): ali não se comemorou um sucesso mas “o fato de o mundo estar conseguindo administrar um desastre”. O desastre do capitalismo nesta etapa de globalização financeira que impõe sacrifícios, empobrecimento e desorganização para os trabalhadores de todos os países. O passo seguinte, e melhor, seria não a administração de um desastre mas a construção de uma etapa nova e avançada na vida da humanidade. Esse passo jamais será dado em Davos, onde esta perspectiva é vista como um espectro e uma ameaça aos privilégios dos ricaços e poderosos do mundo.