Lamarca, um herói do povo brasileiro
Para quem ainda pudesse ter alguma dúvida, a direita brasileira continua viva – vivíssima -, atuante e recalcitrante contra decisões […]
Publicado 17/06/2007 17:25
Para quem ainda pudesse ter alguma dúvida, a direita brasileira continua viva – vivíssima -, atuante e recalcitrante contra decisões que, tomadas com base na legislação em vigor, ela considera descabidas e ultrajantes para a ordem hierárquica que defende. Sua reação contra a decisão da Comissão de Anistia, de indenizar a família do capitão Carlos Lamarca com uma pensão mensal de cerca de 12 mil reais (o salário de um general de brigada) mais 300 mil reais para a família, é o exemplo mais recente desse conservadorismo militante e saudoso da ditadura militar de 1964 a 1985.
A decisão da Comissão de Anistia foi amparada num fato que a direita é incapaz de desmentir: Lamarca foi assassinado por seus perseguidores em 17 de setembro de 1971. Ele fugia a pé, mal armado, exausto, doente e faminto, quando foi encontrado descansando sob um arbusto, no município de Pintada, no sertão baiano. Ele e seu companheiro José Campos Barreto (Zequinha), foram friamente mortos a tiro. Lamarca, que havia aderido à luta contra a ditadura militar, era capitão do Exército. Deixou o quartel de Quitauna, em São Paulo, levando consigo um considerável estoque de armas e munições, no dia 24 de janeiro de 1969. Militar competente e exímio atirador, logo tornou-se uma verdadeira lenda da luta armada, e um dos adversários mais temidos pelas Forças Armadas e pela ditadura. Temor que, mais de trinta anos depois de seu assassinato, se mantém, como mostram as reações contra a decisão da Comissão de Anistia. Generais do Exército repudiaram a decisão. Durante uma palestra do comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, ocorrida na sede do Clube Militar, no Rio de Janeiro, com a participação de 17 generais de quatro estrelas, foram unânimes em considerar Lamarca um “desertor” e “assassino” que, segundo eles, foi “premiado” pela Comissão de Anistia.
Esta avaliação negativa foi repetida pelos grandes jornais. Como, por exemplo, Folha de S. Paulo, que de certa forma repetiu o comportamento que teve durante a ditadura, quando apoiou a ditadura militar e inclusive emprestou carros com os quais a repressão prendeu muitos daqueles que lutavam pela democracia. Em editorial do dia 15, tratou a concessão como sendo “um duplo equívoco”. O primeiro, porque, segundo o jornal, Lamarca não lutou pela democracia, mas pelo socialismo – por “uma ditadura socialista” -, sentenciou. Depois, porque ele teria morrido em combate, um “risco natural para quem escolhe pegar em armas”. O segundo equívoco foi a promoção ao posto de coronel, dando à viúva o direito de receber salário de general. Para a Folha, ele foi um “desertor” e a concessão foi um “prêmio à deserção”. O Estado de S. Paulo foi na mesma linha, dizendo – em editorial do dia 16 – que a decisão “ultrapassa todos os limites do bom senso”, premiando um “facinora desertor”. O jornal questionou também a “recompensa a quem queria instaurar uma ditadura socialista no Brasil” e que, nesta condição, “não combateu em nome da democracia”. E colocou sob suspeita o próprio Superior Tribunal de Justiça que, pensam os donos do jornalão paulista, “forma arbitrária e descabida” ao promover postumamente Lamarca a coronel.
Os jornais, pelo menos, exprimem com alguma clareza as raízes mais profundas de seu questionamento à decisão da Comissão de Anistia. Lamarca deu as costas aos militares e à repressão anti-democrática, anti-nacional e anti-popular da ditadura de 1964. Foi um dos dirigentes da luta contra estes militares e seu governo fascista. Mais do que isto – e este é outro “crime” imperdoável para a direita: ele tinha inscrito, em sua bandeira, a palavra de ordem da luta pelo socialismo. A reação da direita distorcea verdade para tentar passar a imagem, que a ditadura difundiu, de que se trata de um “terrorista” que teria sido morto em combate. Não foi: como inúmeros outros heróis do povo brasileiro, Lamarca pagou com a vida a ousadia de sonhar com um futuro de progresso, liberdade e soberania nacional. Foi, ele sim, assassinado; foi baleado friamente por seus perseguidores ao ser surpreendido sem condições de se defender.
A decisão da Comissão de Anistia precisa ser saudada, assim, como um sinal do avanço da democracia no Brasil e do repúdio dos brasileiros contra todos os regimes de exceção, contra as ditaduras, contra ações arbitrárias e violentas da repressão política que, tendo torturado e assassinado, no passado, hoje ainda se mantém dentro daquele mesmo espírito e, não podendo mais atingir os corpos de seus adversários, tenta insultar a memória dos heróis de nosso povo que foram suas vítimas.
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