Uma das boas lembranças que contam a minha #vidadejornalista é o encontro com a chuva, no Semiárido cearense – região brasileira seca por natureza. Nos grandes sertões por onde andei, terra, bicho e gente esperam a chuva voltar, desde setembro. É tanta espera, até fevereiro (quando a quadra chuvosa deve começar), que só cabe em canção de amor, igual “A triste partida” (Luiz Gonzaga, 1912-1989).
Publicado 27/01/2020 18:04 | Editado 27/01/2020 22:39
Particularmente, minha relação com a chuva era afetiva, durante a infância. De tomar banho vestida com a farda do colégio, de imaginar navegações na água que beirava a calçada, de ter uma arca de noé sempre que o canal do Jardim América transbordava.
Tempos depois, tudo mudou quando a chuva invadiu a casa dos meus pais e levou a maior parte da minha infância: minhas coleções de álbuns de figurinhas e de papéis de cartas, bonecas que dormiam comigo, meus diários e minhas memórias inventadas, a radiola, a maior estante do mundo.
Mas eu cresci a fórceps quando meu pai morreu. E foi uma madrugada inteira de chuva, que marcou a última noite de nós dois.
A chuva foi tristeza até o Semiárido me contar de outro jeito: falar de convivência, dizer de saudade. E a saudade, reescrevo, é quase uma pessoa. Pensando na chuva e nos sertões por onde andei, eu me encontrei com uma crônica que nasceu quando as águas de 2019 chegaram – depois de uns cinco, seis anos sem darem notícia. Do lado de cá, hoje foi um domingo chuvoso, graças a Deus (assim aprendi, com o sertanejo, a agradecer). Foi um dia de abraçar o céu.
Então, aproveito para reproduzir uma crônica que elaborei enquanto chovia. O texto tem duas versões. A original se intitula “A volta da chuva” e é maior, abarcando o retrato falado pela boca dos sertanejos que entrevistei em reportagens. Foi publicada quando eu tinha uma conta no Facebook; um colega leu e sugeriu que a crônica também poderia ser publicada no jornal – mas precisava ser menor. Então, tem a versão que eu editei: “Escrever a chuva”.
De um modo ou de outro, desejo que, ao ler a crônica, você sinta o cheiro de terra molhada, que só o Sertão exala quando toma banho de chuva.
Paz e bem,
Abraços daqui,
(versão 1 / original)
A volta da chuva
abri a porta da varanda do quarto da minha mãe, de onde costumo escrever o mundo, para a chuva entrar. além de um rio, tenho também um sertão dentro de mim e, no sertão, a chuva é quase uma pessoa – dessas que fazem parte da vida inteira da gente. um dia, para o jornal, escrevi uma reportagem que demonstrava, justamente, isto: a convivência do sertanejo com a chuva. foi um caderno especial que chamei de “Grandes Sertões: Afetos”.
desde 2012, o jornal O Povo, como lembra o editorial daquele especial, vinha publicando “experiências de viver a falta: as alternativas, as tecnologias, os recomeços no sertão nordestino. Mas faltava dizer porque se volta, porque se fica.” e, daquela vez, em 2017, eu fui, pelos sertões, fazer essa travessia humana.
para mim, foi uma das reportagens mais bonitas que escrevi. não teve prêmio, reconhecimento, faltou número, especialista, lead… sempre vai faltar, e eu sempre vou aprender. mas, de uns tempos para cá, enquanto organizo meus guardados, eu ando medindo minhas escritas pelo tanto que elas me preenchem – como repórter e como ser humano. e essa reportagem foi, particularmente, bonita porque me fez compreender coisas assim (seguem alguns trechos):
(no sertão, a chuva é Deus mandando notícias).
no Nordeste do Brasil, a chuva faz falta. é como uma mãe, um pai, um irmão, um amigo, um vivente, enfim, capaz de não morrer; que vai e volta, desaparece e ressurge, que é companhia da vida inteira da gente. no Nordeste, a chuva é uma saudade. é um tempo que a gente sempre vai esperar ter de volta – sem nem saber se vem, se não vem.
desde criança, quando eu tomava banho de bica na calçada e o meu pai varria a água que caía do céu para dentro do bueiro, salvando nossa arca de noé das enchentes, eu sempre imaginei a chuva como alguém que chega depois que a gente sempre esperou.
e, quando a chuva chega, assim como neste último dia de novembro, feito amor que desembarca na poeira de alguém, feito memória que desembarca na estação dos anos, feito esperança que desembarca no meio do nada, a gente abre as portas e os braços, para ela entrar. é mais ou menos assim.
(versão 2 / editada para o jornal)
Escrever a chuva
Quando a chuva chegou, ontem pela manhã, abri a porta para ela entrar. Tenho um sertão dentro de mim e, no sertão, a chuva é quase uma pessoa – dessas que fazem parte da vida inteira da gente. Quem me contou assim, da chuva como uma pessoa de casa, foi Auxiliadora, Abel, Valquíria, Dedé, Ivone, sertanejos de uma reportagem que fiz, em 2017, depois de cinco anos de estiagem, chamada “Grandes Sertões: Afetos”.
Para os sertanejos, a chuva “é comparável a uma pessoa que tá distante, que a gente não tem notícia e volta. É aquela alegria com satisfação de amor”. E se fica olhando o tempo do alpendre, e dá vontade de “pular, de chorar, correr dentro do quintal” quando se vê a água fazendo o parto da terra. “A chuva é muito bonito… No verão, tudo é seco, preto. Basta dar uma chuva pra nascer!”, admiramos. “Eu nem controlo ficar dentro de casa quando tá chovendo! Se eu pudesse, aparava cada pingo de chuva que cai!”, desejamos.
O povo de fora nunca vai entender tudo isso. Vai sempre pensar apenas que o sertanejo é pobre e ignorante, que vive à espera da chuva para plantar e comer. Mas pobre e ignorante é quem pensa assim. É pobre e ignorante de sentimento, de beleza, de afetos, de grandeza…
No Nordeste do Brasil, a chuva faz falta. É como uma mãe, um pai, um irmão, um amigo, um vivente, enfim, capaz de não morrer; que vai e volta, desaparece e ressurge, que é companhia da vida inteira da gente. Nos sertões, a chuva é uma saudade. É um tempo que a gente sempre vai esperar ter de volta – sem nem saber se vem, se não vem.
E quando a chuva chega, assim como ontem pela manhã, feito amor que desembarca na poeira de alguém, feito memória que desembarca na estação dos anos, feito esperança que desembarca no meio do nada, a gente abre as portas e os braços, para ela entrar.
Ana Mary C. Cavalcante é jornalista.
Fonte: Blog Ana dos Suspiros