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Publicado 23/11/2006 16:13 | Editado 13/12/2019 03:30
Não faltou pão na minha mesa hoje, antes
a mulher, diligente, nos alimentou com sopas
e preencheu nossa alma com queijos, patês
e frutas da estação.
Ninguém assaltou minha casa hoje
ou violou o corpo de minhas filhas. O revólver
dorme na gaveta ensarilhado como um cão de aço.
Há pouco era Vivaldi, agora esse concerto de Mozart.
Mas os desempregados do mês se metem entre a harpa
e a flauta e gritam, gritam, gritam
e queimam ônibus em plena sala.
Quantos desempregados posso empregar
com meu afeto? Quantos desempregados
na área do ABC e fora do alfabeto?
Tenho um diploma, suado é verdade.
Subo a serra, tenho uma casa de campo
e na neblina me iludo que não me acharão
os revoltados. Subo ávido, de carro,
a 100 ou 120 por hora.
Meu vinho custa o dobro
de um ano atrás.
Na minha horta tenho alguns legumes
e remorsos.
Me sinto rico por ter dois pares de sapato
e dois olhos encharcados de impotência.
Os que faziam versos pela paz na década de 40
julgavam que teríamos o quê, nesses 80?
O que dizer a Éluard, Neruda, Sandburg e Lorca
do nosso impasse?
O adágio de Mozart de novo atravessa-me a sala
e o poema, e depois que Segóvia emudeceu suas cordas.
Os pobres, no entanto, continuam
espalmando a fome na vidraça.
Se eu repartisse o pão com esses milhares
não chegaria a alimenta-los e ficaria faminto
e pobre, embora com a consciência aliviada.
O concerto de Mozart em minha sala
e o desconcerto do mundo a me executar.
Não, ninguém assaltou minha casa hoje
ou violou o corpo das minhas filhas, e o revólver
dorme na gaveta ensarilhado como um cão de aço.
O Lado Esquerdo do Meu Peito (Livro de aprendizagens) – Affonso Romano de Sant’ Anna
Editora Rocco Ltda 1992.
Digitação Camila Ferreira.