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Agostinho Neto: Aspiração

*

Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas


 


Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar


 


Ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos


 


Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida


 


E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado


 


Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco


 


Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo


 


Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer


 


E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda


 


O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.


 



*


Sou um mistério.


 


Vivo as mil mortes
que todos os dias
morro
fatalmente.


 


Por todo o mundo
o meu corpo retalhado
foi espalhado aos pedaços
em explosões de ódio
e ambição
e cobiça de glória.


 


Perto e longe
continuam massacrando-me a carne
sempre viva e crente
no raiar dum dia
que há séculos espero.


 


Um dia
que não seja angústia
nem morte
nem já esperança.


 


Dia
dum eu-realidade.


 


Poesia Africana de Língua Portuguesa (Antologia)
Maria Alexandre Dáskalos, Livia Apa, Arlindo Barbeitos
Lacerda Editores – edição 2003