“Na vida, juntamos pedaços de acontecimentos e de coisas. As cartas são coisas e acontecimentos que atravessam o mundo e nossas paredes.”
Publicado 12/05/2025 15:28 | Editado 12/05/2025 15:30
Deixo uma carta junto às contas do mês. Coloquei no envelope, passei cola e propositalmente ignorei o destinatário. Talvez nunca seja lida, se perca na correria e no amontoado de coisas que vamos juntando ao longo da vida.
Na vida, juntamos pedaços de acontecimentos e de coisas. As cartas são coisas e acontecimentos que atravessam o mundo e nossas paredes.
Parece que escrever tem sido a companhia mais tranquila, tenho pensado insistentemente em casar. As palavras são mais que uma transa casual e não têm hora para acontecer. Às vezes, de madrugada, acordo cheio de vontades para dançar; outras, ao meio-dia, o sol escorrendo pelas pálpebras e as palavras deslizando na inquietude dos pensamentos.
Escrevo cartas, algumas com destinatários, a maioria abertas como o céu. Algumas vezes, escrevo enfartando; noutras, sorrindo; gozo também. Entretanto, tenho percebido que o exercício da escrita é como se tivesse cavando um poço com o desejo de encontrar água. Não se cavam poços porque se apreciam os buracos.
Hoje, ainda posso escrever e tenho pressa, mas quero ser lido calmamente, com pausas, vírgulas e pontos. Mas é necessário que me leia com interrogações, para que flua a leitura do não dito, os contextos e a complexidade desencontrada da objetividade do texto. As entrelinhas são labirintos que provocam mais perguntas do que certezas.
Poderia escrever uma carta para os meus amores, que são mais que três, é quase uma humanidade inteira. Escreveria também para quem desapareceu, deixando na memória o gosto da saudade, o brilho nos olhos e a boca molhada. Para os desafetos, não sei se escreveria: tenho grandes dúvidas e um moinho de dores.
Todos os dias escrevo cartas como orações. Envio de vez em quando, mastigo com as tempestades algumas. Entre uma carta e outra, lembro dos bolos de cenoura com cobertura de chocolate e da criança de nove anos de idade que sempre me fazia companhia na hora do almoço.