Para além do título de sete letras, em vários aspectos Coringa me fez pensar em Bacurau. Ambos vêm causando hype comparável na plateia brasileira com histórias catárticas e comentário social banhado em sangue. Os dois têm personagens que reagem com violência a ataques de uma elite cínica e predatória. A diferença fundamental é que, em Bacurau, a reação parte de uma comunidade, enquanto em Coringa o agente é um indivíduo que, sem perceber, catalisa um movimento coletivo.
Por Carlos Alberto Mattos
Publicado 14/10/2019 12:45 | Editado 13/12/2019 03:29
São expressões de suas respectivas culturas: o gregarismo latino-americano e o individualismo norte-americano. O filme de Kleber e Juliano mostra a força da união dos fracos, que se tornam heróis de si mesmos. O blockbuster de Todd Phillips dispara um turbilhão anárquico para gestar um supervilão. Uns apelam à droga psicodélica, outro à doença mental.
Há uma ambivalência moral por trás desses contos de vingança. A violência “santa” de Bacurau, ungida na mitologia do cangaço, é positivada como garantia de sobrevivência do caçado. A de Coringa se apoia na argumentação social para explicar o surgimento de um malfeitor.
A ambiguidade está presente nos dois casos. Em Coringa, está na reedição da fábula do palhaço triste, na falta de graça do candidato a humorista, na ironia com a própria imagem do sorriso que empesteia as redes sociais com seus emojis. “É muito difícil ser feliz o tempo todo”, queixa-se Arthur Fleck num dado momento. Suas danças, entre Michael Jackson e o butô, assim como sua risada psicótica, são a própria celebração da dor como forma de vida.
À condição de incel (celibatário involuntário, subcultura de frustrados sexuais que vem perpetrando crimes ultimamente) Arthur soma a de pária social, vítima tanto de brancos ricos quanto de negros pobres, de estranhos e de gente próxima. Ele vive numa bolha de ilusão, mentiras e bullying permanente. Gotham City inteira parece conspirar contra ele em sua decadência urbana que lembra a Nova York dos anos 1970.
Aquela era a época do motorista de Taxi Driver e do angry man de Rede de Intrigas, que estão para Arthur Fleck como Lampião está para Lunga e o povo de Bacurau. Robert De Niro, no papel do apresentador de TV, parece um lembrete dessa filiação. Há quem puxe a ficha de Kubrick e Laranja Mecânica, mas não precisamos chegar a tanto.
Coringa e Bacurau falam ao passado e ao presente de seus respectivos países por meio de suas cidades fictícias. No brasileiro, porém, a cidade é puramente vítima e tem uma harmonia idealizada. No norte-americano, a cidade distópica e cruel é a vilã que produz Joker.
Os dois filmes se aproximam também por uma impressão de falsa complexidade. Uma certa esquematização prevalece na divisão entre algozes e vítimas, bem como no engendramento da revanche e no encaminhamento dos espectadores rumo ao brinde da catarse, ainda que incômoda.
Coringa impressiona sobretudo pela espantosa performance de Joaquin Phoenix e pela concepção impregnante de cada cena. Os fãs de Batman devem se deliciar com o encontro entre Arthur e o pequeno Bruce Wayne, de quem se tornará a futura e maior dor de cabeça. As testemunhas dos protestos mundiais e do ativismo dos Anonymous dos anos 2000 podem gelar diante de um trem de metrô coalhado de palhaços.
A porosidade de Bacurau e Coringa, sua capacidade de produzir ressonâncias cinematográficas e extra-cinematográficas chegam a superar suas qualidades intrínsecas, que não são poucas. Por isso estão enchendo os cinemas e reverberando na sociedade.