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Celso Marconi: Neville D’Almeida, um cronista da beleza e do caos

O cineasta Neville D’Almeida merece a homenagem que o Canal Brasil está lhe fazendo ultimamente com as exibições do documentário Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos e de seus filmes de longa-metragem. Esse material também está disponível no site Making Off.

Por Celso Marconi*

Neville D Almeida

Neville ficou como um cineasta sem definição real entre pertencer ao Cinema Novo ou ao movimento chamado Udigrudi nos anos 70. De certa forma ele tem uma autonomia pessoal. Não está diretamente ligado a nenhum dos dois grupos, embora seja amigo dos participantes, pelo menos de alguns. Mas pessoalmente sempre se julgou um “injustiçado”.

Na verdade, todos os que fizeram cinema nessa época (60 a 80) foram escanteados, até mesmo “aprisionados”, ou pelas forças policiais, ou pelas forças da burocracia. Neville D’Almeida tem uma força intrínseca que o faz ser essa figura não presa por grupos e nem mesmo pela censura que sofreu durante muito tempo da sua produção.

O documentário Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos, dirigido por Mário Abbade, tem 1h48min e conta um tanto da história desse cineasta através de depoimentos, que recebem o contraponto dos comentários do próprio Neville. Uma lacuna é não informar os nomes de quem está falando. O espectador nem sempre saberá quem é, mesmo que nos créditos finais haja a apresentação.

Mas, como conteúdo, o filme está bem estruturado e mostra pelo menos uma visão complexa desse artista que nunca foi mesmo um cineasta – mas um artista múltiplo. Ele tanto faz roteiro quanto dirige, fotografa, interpreta. E nas artes visuais talvez tenha criado uma biografia muito maior, que eu confesso conhecer somente por informações.

No início do documentário consta que ele está há mais de 20 anos sem filmar. Nesse período, criou muito em artes plásticas ou visuais. Em 2011, representou o Brasil na Bienal de Veneza, uma das mais importantes do mundo.

No começo, em 1973, Neville já havia trabalhado com o artista plástico de vanguarda Hélio Oiticica em Nova York – eles participaram de um projeto famosíssimo, o Cosmococa. Um filme de Neville dessa época, Mangue Bangue, está no acervo do mais famoso museu de Nova York, o MoMA. Penso que em São Paulo ou Rio de Janeiro alguém deveria produzir uma grande retrospectiva de sua arte “visual”.


O cineasta Neville D'Almeida, que foi retratado em documentário e recebe homenagem do Canal Brasil

No cinema, Neville D’Almeida é conhecido até hoje em função muito dos dois filmes que fez a partir de estórias de Nelson Rodrigues, A Dama do Lotação e Os 7 Gatinhos. Nas minhas críticas de cinema no Jornal do Commercio, do Recife, certamente estão lá opiniões minhas com elogios a esses filmes. Sem dúvida, Neville uniu textos autênticos, como os de Nelson Rodrigues, à interpretação da jovem atriz Sônia Braga, extraordinária nessa coisa da autenticidade, com uma direção forte como criação e assim ganhou todo o público brasileiro.

Os filmes eróticos de Neville foram petardos atômicos contra a ditadura dos militares. Entre os depoimentos do documentário, certo que o destaque é também para o diretor pernambucano Cláudio Assis, que tem um senso cinematográfico muito agudo para destacar o erótico com sentido inclusive político.

Neville D’Almeida nasceu em Belo Horizonte em 1941. Com quase 80 anos, é um mineiro atípico. Não é calado. No documentário, consta que mora na Ilha da Gigoia, que é um lugar de turismo no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. Sem dúvida foi o sucesso que obteve com A Dama da Lotação que lhe permitiu comprar essa casa nesse recanto.

Mas tem uma declaração curiosa de um ator no documentário: ele fala que foi chamado para ir à casa de Neville para um contrato e, então, pensou: “No mínimo, vou ser currado”. Mas foi ao encontro. E então disse que nunca viu uma casa tão normal, tudo certinho, nenhum fato diferente. E declarou no documentário: “Neville é um senhor de respeito”. E repetiu isso várias vezes. Argh!

* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.